CAPÍTULO
13
—
Então, você viu o que aconteceu. O que achou? — sir Rodney perguntou.
Karel
estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na
mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pensava que
ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam
vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o
estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simplicidade — uma mesa de
pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de
encosto reto.
Num
canto, é claro, havia uma lareira. Rodney preferia viver com simplicidade, mas
isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo
Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de
pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando
o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma
delas, uma grande janela com sacada se abria para o campo de treinamento da
Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de
porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de
Rodney, onde havia uma simples cama de soldado e móveis de madeira. Quando a
esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha
morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque
inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem
nenhum enfeite.
—
Sim, eu vi — Karel concordou. — Não sei se acreditei, mas vi.
—
Você só o viu uma vez — Rodney disse. — Ele fez isso várias vezes durante toda
a sessão, e estou convencido de que o fez inconscientemente.
—
Tão depressa quanto aquele que eu vi? — Karel perguntou, e Rodney assentiu
energicamente.
—
Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou
o ritmo do exercício — ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam
pensando: — O garoto tem um dom natural.
Karel
inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado
para contestar o fato. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o garoto
por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e
demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a
habilidade com a espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais
um instinto do que uma habilidade.
Esses
eram os que se tornavam campeões. Os mestres da espada. Guerreiros experientes
como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vocação
levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se
tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas
personalidades. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea
com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento
consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à
velo-cidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim
sendo, representavam uma grande responsabilidade para os que estavam envolvidos
com seu treinamento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser
cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em programas de treinamento para que
o guerreiro, já muito eficiente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro
potencial de genialidade.
—
Tem certeza? — Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela
janela.
Em
pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos
como um raio.
—
Tenho — ele disse simplesmente. — Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter
outro aluno no próximo semestre.
Wallace
era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade
de dar o polimento final nas habilidades básicas que Karel e os outros
ensinavam. No caso de um aluno brilhante — como Horace evidentemente era — ele
daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo
que Rodney tinha sugerido.
—
Só depois disso? — ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o
semestre seguinte. — Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as
técnicas básicas.
Mas
Rodney sacudiu a cabeça.
—
Ainda não avaliamos a personalidade — retrucou. — Ele parece um bom garoto, mas
nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de instrução
avançada que Wallace pode oferecer.
Quando
pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace
tivesse de ser dispensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha,
isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já estivesse no caminho de ser um
espadachim altamente qualificado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com
ressentimento.
—
E tem outra coisa — Rodney acrescentou. — Vamos manter esta conversa entre nós
e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada sobre isso
ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
—
Tem toda a razão — Karel concordou. Ele terminou a cerveja em dois goles
rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. — Bem, acho melhor ir. Tenho
uns relatórios para acabar.
—
E quem não tem? — perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos
trocaram sorrisos pesarosos. — Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra
envolvesse tanta papelada. — Rodney comentou, fazendo Karel rir.
—
Às vezes, acho que deveríamos esquecer o treinamento com armas e simplesmente
jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele
fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como
mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando
Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
—
Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
—
Claro — Karel respondeu. — Não queremos que comece a pensar que tem alguma
coisa de especial.
Naquele
momento, não havia a menor possibilidade de Horace imaginar que tinha algo de
especial — pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era
que tinha o dom de atrair problemas.
As
pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de
exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido
que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava
pelo inevitável castigo. Eles sabiam que a regra durante o 1° semestre era que,
quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe pagaria por ele.
Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha
saído do quarto com intenção de ir até o rio para escapar à condenação e a
críticas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso,
foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os
três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra
de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus
exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por isso.
Entretanto,
sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de
Guerra. Horace, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de
ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros
instrutores. Simplesmente pressupôs que as coisas tinham que ser assim e, sem
ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi
por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a
margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos
instrutores. Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na
altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
—
O bebê não sabe usar a espada — disse Alda.
—
O bebê deixou o mestre de guerra zangado — Brian acrescentou, usando o mesmo
refrão. — O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar
com espadas.
—
O bebê devia jogar pedras, em vez disso — Jerome concluiu com sarcasmo. — Pegue
uma pedra, bebê.
Horace
hesitou e então olhou à sua volta. A margem do rio estava cheia de pedras, e
ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de
sua jaqueta ficaram encharcadas.
—
Uma pedra pequena, não, bebê — Alda disse sorrindo maldosamente para ele. —
Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
—
Uma pedra muito grande — Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria
que Horace apanhasse uma pedra enorme.
Horace
olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e
pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil
levantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal
suportou o peso.
—
Vamos ver, bebê — Jerome disse. — Levante-a.
Horace
apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava
manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a
levantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
—
Mais alto, bebê — Alda ordenou. — Acima da cabeça.
Sofrendo,
Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele
a levantou acima da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
—
Muito bom, bebê — Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a
abaixar a pedra.
—
O que está fazendo? — Jerome perguntou zangado. — Eu disse que está bom. Isso
quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace
se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços.
Alda, Bryn e Jerome fizeram um gesto de aprovação.
—
Agora você pode ficar aí e contar até 500 — Alda disse. — Depois pode voltar ao
dormitório.
—
Comece a contar — Bryn mandou, rindo da idéia.
—
Um, dois, três... — Horace começou, mas todos gritaram com ele quase
imediatamente.
—
Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
—
Um... dois... três... — Horace contou e eles aprovaram.
—
Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir — Alda disse.
—
Não tente nos enganar, porque vamos descobrir — Jerome ameaçou. — E então você
vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo,
os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do
rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de
frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num determinado momento, ele perdeu
o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas
dificultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele
não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em
algum lugar, vigiando-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a
suas ordens.
“Se
é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam,” ele pensou. Mas
prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém
pagar pela humilhação que estava passando.
Muito
mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo
ressentimento queimando seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele
chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais
para comer.
CAPÍTULO
14
—
Leve-o para dar uma volta — Halt sugeriu.
Will
olhou para o pônei desgrenhado que o observava com um olhar inteligente.
—
Vamos, garoto — ele chamou, puxando o cabresto.
No
mesmo instante, Puxão firmou as pernas dianteiras e recusou-se a se mexer. Will
puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei
teimoso se mover.
O
Velho Bob se torcia de tanto rir.
—
Ele é mais forte do que você!
Envergonhado,
Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão
agitou as orelhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
—
Não olhe para ele — Halt ensinou com suavidade. — Apenas pegue a corda e se
afaste. Ele vai acompanhar você.
Will
tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas
mãos e começou a andar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para
Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na direção do portão na outra
extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada
sobre a cerca.
—
Ponha os arreios nele — o vigilante mandou.
Puxão
trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a
sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
—
Puxe com bastante força — o Velho Bob aconselhou.
Finalmente,
a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
—
Posso montar nele agora?
O
vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
—
Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente — ele disse finalmente.
Will
hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a
ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com
agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
—
Vamos! — Will ordenou, batendo os calcanhares na lateral do pônei.
Por
um momento, nada aconteceu. Então Will sentiu um leve movimento estremecer o
corpo do pônei.
De
repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar,
fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou
violentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras
na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma
cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão
ficou parado perto dele de orelhas empinadas, observando-o com atenção.
“Por
que você foi fazer uma coisa boba como essa?”, ele parecia perguntar.
O
Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
—
O que eu fiz de errado?
Halt
passou por baixo da cerca e foi até onde Puxão estava parado olhando para os
dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e
pousou uma das mãos em seu ombro.
—
Nada, se esse fosse um cavalo comum — ele respondeu. — Mas Puxão foi treinado
especialmente para os arqueiros.
—
Qual é a diferença? — Will interrompeu zangado, e Halt levantou a mão pedindo
silencio.
—
A diferença é que se deve pedir permissão a todos os cavalos dos arqueiros
antes de montar nele pela primeira vez — Halt explicou. Eles são treinados
desse jeito para que nunca possam ser roubados.
—
Nunca ouvi falar de uma coisa dessas — Will disse, coçando a cabeça.
—
Poucas pessoas ouviram — ele disse, sorrindo ao se aproximar. — É por isso que
os cavalos dos arqueiros nunca são roubados.
—
Bom — disse Will — o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar
nele?
Halt
deu de ombros.
—
Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente — ele
fez um gesto na direção do cavalo maior. — O meu, por exemplo, reage às
palavras permettez-moi.
—
Permettez-moi? — Will repetiu. — Que palavras são essas?
—
Isso é galês e quer dizer: “Você me dá permissão?” É que os pais dele vieram da
Gália, entende? — Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. — Quais são
as palavras para o Puxão, Bob?
Bob
fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se
iluminou.
—
Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: “Tudo bem?”
—
Tudo bem? — Will repetiu, e Bob sacudiu a cabeça.
—
Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se
um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às
suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Puxão:
—
Tudo bem?
Puxão
relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou,
encorajando-o.
—
Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com
muito cuidado, Will subiu no lombo desgrenhado do pônei outra vez. Suas costas
ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada
aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
—
Vamos lá, garoto — disse baixinho.
As
orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda
com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes
e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a trotar
levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt
observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O
arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
—
Leve ele para fora, Will — mandou —, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente,
Will dirigiu o pônei na direção do portão e, quando passaram por ele rumo ao
campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calcanhares. Ele
sentiu o pequeno corpo musculoso do animal se encolher um pouco, e então Puxão
disparou num galope rápido.
O
vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o
pescoço do pônei, estimulando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas
de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia
rápido como o vento. Suas pernas curtas se misturavam à paisagem enquanto ele
levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem
ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea
esquerda.
No
mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em
diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi
outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa
quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras
minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a
grama áspera para perto deles.
Um
tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer
qualquer coisa para contorná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou
sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou
levemente em resposta.
Eles
já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas
rédeas. No mesmo instante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois para
um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as
rédeas. Ele fez que o pônei parasse ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça
desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do
animal.
—
Ele é fantástico! — disse sem fôlego. — É tão rápido quanto o vento!
—
Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr — Halt disse sério. — Você
fez um bom trabalho com ele, Bob — elogiou, virando-se para o velho.
O
Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agradecimento e se inclinou para também
afagar o pônei desgrenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e
preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse estava entre os melhores
que já tinha visto.
—
Ele consegue manter esse ritmo o dia todo — garantiu orgulhoso. — Põe qualquer
cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
—
Não foi tão mal — Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
—
Não foi tão mal? Você é um homem muito duro, arqueiro! O garoto parecia leve
como uma pena naquele salto! — o velho olhou para Will, sentado de lado no
pônei, e fez um gesto de apreciação. — E também sabe usar as rédeas, ao
contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will
sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada
para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
“Ele
nunca sorri”, Will pensou. Começou a desmontar, mas parou de repente.
—
Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
—
Não, garoto — Bob garantiu rindo. — Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar,
contanto que seja você a montar nele.
Aliviado,
Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça
carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
—
Posso dar outra para ele?
—
Só mais uma — Halt respondeu. — Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar
gordo demais para correr se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão
resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de
maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will
passou o resto do dia recebendo dicas do Velho Bob sobre como montar e
aprendendo a cuidar da sela e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou
sabendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele
escovou e tratou o pêlo desgrenhado até deixá-lo brilhando, e Puxão pareceu
gostar dos cuidados. Finalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço,
ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato
momento em que Halt entrou no estábulo.
—
Venha — ele disse. — Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos
andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E,
ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se
preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado “à toa”, como o arqueiro
tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar,
estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pequena cabana de Halt na
beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente
do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e
que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para
cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta
para casa.
Os
cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de
volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma
conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas
a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do
arqueiro.
Finalmente,
não conseguiu mais se conter.
—
Halt? — ele começou com cautela.
O
arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a
falar.
—
Qual é o nome do seu cavalo?
Halt
olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava
perto dos gigantescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
—
Acho que é Abelard — ele contou.
—
Abelard? — Will repetiu. — Que raio de nome é esse?
—
É gálico — o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles
cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as
árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou
a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extremamente compridas e um corpo
ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas
imaginou que um comentário bobo como aquele não iria impressionar o arqueiro.
Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus
pensamentos durante alguns dias.
—
Halt? — ele disse outra vez.
O
arqueiro soltou um leve suspiro.
—
O que é agora?
Seu
tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
—
Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de
Morgarath?
—
Hum — Halt grunhiu.
—
Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? — o garoto quis
saber.
—
Nomes não são importantes — Halt disse. — E eu não lembro.
—
Foi você? — Will continuou, certo de que o arqueiro sabia a resposta.
Halt
jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
—
Já disse, nomes não são importantes.
Houve
um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
—
Você sabe o que é importante? Will sacudiu a cabeça.
—
O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele
bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente
como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will
bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em
perseguição a seu amigo maior.
—
Vamos, Puxão! — Will estimulou. — Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro
cavalo de um arqueiro!
CAPÍTULO 15
Will
conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que tinha sido montada fora dos
muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e
ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das
pessoas.
Era
o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os
meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita,
tradicionalmente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época,
a feira itinerante vinha para o castelo e armava barracas e tendas. Havia
engolidores de fogo e malabaristas, cantores e contadores de histórias. Havia
barracas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bolas macias de couro em
pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes,
Will tinha a impressão que os cubos eram um pouquinho maiores do que as argolas
e, para falar a verdade, ele nunca tinha visto ninguém ganhar nenhum prêmio.
Mas as brincadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio
bolso.
Naquele
momento, porém, Will não estava preocupado com a feira e suas atrações. Ele
teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se
encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo
a tradição, todos os mestres de ofício davam folga aos seus aprendizes no Dia
da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha
se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O
arqueiro parecia não dar importância às tradições e tinha seu jeito de fazer as
coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt
tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que
provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles
três meses tinham sido uma época de treino constante com o arco e as facas que
Halt lhe tinha dado. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo,
movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, tentando se movimentar sem
que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de
Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
“Essa
foi a melhor parte de todas”, ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e
para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não
diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treinamento na Escola de Guerra
tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny
tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a
ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela
já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade
dela para quem quisesse ouvir — dando bastante ênfase ao papel essencial que
seu treinamento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O
estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de
fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As
tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele
tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para
a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou
desejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will
sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
—
Só vai ganhar uma — ele disse. — Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão
balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele
e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se
sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
—
Ora, é o jovem Will, não é mesmo? — perguntou uma voz grave logo atrás dele.
Will
se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald,
sentado no seu gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus
principais cavaleiros.
—
Sim, senhor — Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão
lhe dirigir a palavra. — Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O
barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado
confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
—
Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem — o barão
comentou. — Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou
todos os seus truques?
Will
olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas
semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a
silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à paisagem. Aquela era uma
das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com
tanta facilidade.
—
É a capa, senhor — Will afirmou. — Halt a chama de camuflagem.
O
barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito
novo para Will.
—
Só não a use para roubar mais bolos — ele disse com uma severidade fingida, e
Will sacudiu a cabeça depressa.
—
Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar
umas palmadas no meu trase... — ele parou envergonhado, pois não sabia se
“traseiro” era uma palavra que se podia dizer na presença de alguém tão
importante como o barão.
O
barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse
em seu rosto.
—
Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando
de aprender a ser um arqueiro?
Will
ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava
gostando ou não. Passava os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades,
treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira
vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
—
Acho que sim — ele disse hesitante. — É que... — a voz dele desapareceu, e o
barão o olhou com atenção.
—
É que...? — ele insistiu.
Will
mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre
nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele
tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
—
É que... Halt nunca sorri — continuou pouco à vontade. — Ele está sempre tão
sério.
Ele
teve a impressão de que o barão estava escondendo um sorriso.
—
Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negócio sério — o barão falou. — Tenho
certeza de que Halt dá essa impressão a você.
—
O tempo todo — Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu
deixar de sorrir.
—
É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho
muito importante.
—
Sim, senhor. — Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o
barão.
Arald
estendeu a mão para apanhar as rédeas. Seguindo um impulso, antes que os nobres
se afastassem, Will deu um passo à frente.
—
Desculpe, senhor — ele disse hesitante, e o barão se virou para olhá-lo.
—
Sim, Will? Will mexeu os pés de novo e continuou.
—
Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lutaram contra Morgarath?
O
rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
—
Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
—
Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho
secreto através de Slipsunder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas
costas...
—
Isso é verdade — Arald confirmou.
—
Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro — Will terminou,
sentindo-se corar com sua ousadia.
—
Halt não lhe contou? — o barão perguntou. Will deu de ombros.
—
Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas
nomes, não.
—
Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? — o
barão retrucou, parecendo franzir o cenho novamente.
Will
engoliu em seco e prosseguiu.
—
Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi
condecorado ou homenageado por sua habilidade.
O
barão pensou por um momento e então tornou a falar.
—
Bem, você está certo, Will — ele confirmou. — Foi Halt. E eu quis homenageá-lo,
mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de
homenagem.
—
Mas... — Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de
falar mais.
—
Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está
aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que
Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida
honrosa.
—
Sim, senhor.
Will
fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do
cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
—
Agora, chega de conversa. Não podemos tagarelar o dia inteiro. Vou jogar.
Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O
barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um
segundo.
—
Will — ele chamou.
—
Sim, senhor?
—
Não conte a Halt que eu lhe disse que ele conduziu a cavalaria. Não quero que
ele fique zangado comigo.
—
Sim, senhor — Will concordou com um sorriso.
Quando
o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.
CAPÍTULO 16
Jenny,
Alyss e George chegaram logo depois. Como ti-nha prometido, Jenny trouxe uma
porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou
cuidadosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua
volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as
mãos numa das obras-primas de Jenny.
—
Vamos! — George disse. — Estou morrendo de fome.
—
Devemos esperar o Horace — Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua
volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
—
Ah, vamos lá — George pediu. — Fiquei trabalhando feito um escravo numa petição
para o barão a manhã toda!
—
Talvez a gente deva ir comendo — Alyss disse, revirando os olhos para o céu. —
Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós
podemos guardar algumas para o Horace.
Will
sorriu. Agora, George estava totalmente diferente do garoto tímido e gaguejante
do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito
desenvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e separou duas para
Horace.
Os
outros começaram a comer ansiosamente, e logo começou o coro de elogios para as
tortas. A reputação de Jenny era merecida.
—
Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência — George
disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se
estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta
seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
—
Há quanto tempo ele está assim? — Will perguntou para Alyss. — Todos ficam
assim depois de alguns meses de prática legal — ela respondeu sorrindo. —
Ultimamente, o problema é fazer o George calar a boca.
—
Ah, sente-se, George — Jenny ordenou, corando com o elogio, mas muito satisfeita.
— Você é mesmo um bobo.
—
Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que
revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! — ele levantou
o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. — Eu lhe
dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss
e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta
e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era
uma pena que Horace tivesse escolhido exatamente aquele momento para chegar.
Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a
disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais,
pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava
tornando a sua vida um pesadelo — literalmente. Os três cadetes do 2° ano o
levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para
realizar as tarefas mais humilhantes e exaustivas.
A
falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para
o atormentar ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da
classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer
solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de
lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa
que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a
Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda
mais constrangido e humilhado.
Agora,
no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de
Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu banquete.
Ficou zangado e magoado porque eles não se importaram em esperar por ele. Não
tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela
já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos
colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny
sempre estava alegre, simpática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele
percebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez naquele dia e sentiu que
ela o tinha decepcionado.
Estava
predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele,
como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele
para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia
alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no
momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na
orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a
pedir, aos gritos, que parasse.
Quanto
a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era
estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma
pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os
outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace
odiou todos.
—
Bom, isso é muito legal, não é mesmo? — disse com amargura, e todos se viraram
para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como
não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
—
Horace! Finalmente você chegou! — ela disse.
Ela
começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez
parar.
—
Finalmente? — ele repetiu. — Eu me atraso alguns minutos e, de repente, chego
aqui “finalmente”? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo
não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros,
depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu
verdadeiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E
ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas.
Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado
para ele.
—
Não, não — ela disse depressa. — Ainda sobraram algumas! Veja.
Mas
a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
—
Bem — ele disse com a voz cheia de sarcasmo —, talvez eu deva voltar mais tarde
para que vocês tenham tempo de acabar com elas também.
—
Horace!
Lágrimas
surgiram nos olhos de Jenny. Ela não tinha idéia do que estava errado com o
amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os
antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George
deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro
inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de
perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
—
Não há motivo para ser tão desagradável — ele disse com sensatez.
Mas
Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro
garoto para o lado.
—
Fique longe de mim — ele disse. — E veja bem como fala com um guerreiro!
—
Você ainda não é um guerreiro — Will zombou. — Ainda é só um aprendiz como
todos nós.
Jenny
fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace,
que estava se servindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu
Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
—
Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele
olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só
serviu para deixá-lo mais desagradável.
—
Acho que Halt está ensinando você a andar escondido por ai, espiando todo
mundo, não é?
Horace
deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa
manchada de Will com o dedo.
—
O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
—
É uma capa de arqueiro — Will informou com calma, controlando a raiva que
estava crescendo dentro dele.
Horace
resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando
migalhas para os lados.
—
Não seja tão desagradável — George pediu.
Com
o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
—
Veja como fala, garoto! — ele disparou. — Você sabe que está falando com um
guerreiro!
—
Um aprendiz de guerreiro — Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra
“aprendiz”.
Horace
ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo
que o garoto maior estava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar
de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pensar duas vezes. Ele
nunca tinha visto aquele olhar de desafio antes. No passado, sempre tinha visto
medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o perturbou um
pouco.
Em
vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
—
E isso? Acha desagradável também? — ele disse quando o garoto magro e alto
cambaleou para trás.
Os
braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda.
Acidentalmente, deu um soco rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que
pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
—
Quieto, Puxão — Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi
então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei
desgrenhado com mais atenção.
—
O que é isso? — perguntou zombeteiro. — Alguém trouxe um cachorro grande e feio
para a festa?
—
Ele é o meu cavalo — Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele
podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser
insultado.
Horace
soltou uma forte gargalhada.
—
Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de
verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom
banho!
Horace
franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O
animal olhou de lado para Will. “Quem é esse cara irritante?”, seus olhos
pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava
tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
—
Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um arqueiro pode montar nele.
—
Minha avó poderia montar esse cachorro desgrenhado! — Horace retrucou rindo.
—
Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa — Will respondeu.
Antes
mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou
para Will, e o garoto quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace
pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
—
Muito fácil — Horace exultou. Em seguida, enterrou os calcanhares nos lados de
Puxão. — Vamos, cachorrinho! Vamos dar uma corrida. Will viu o conhecido
retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no
ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e
jogou as traseiras no ar.
Horace
voou como um pássaro durante vários segundos e caiu estirado de costas na
poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou
deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele
estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido
aquilo.
Havia
então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali.
Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
—
Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? —
perguntou sério.
George
e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não
conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num
instante, Horace se levantou com uma expressão furiosa. Ele olhou à sua volta,
viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça enquanto
corria na direção de Puxão.
—
Você vai ver, cavalo maldito! — ele gritou furioso, agitando o pau na direção
do animal com selvageria.
O
pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o
rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou
nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão.
Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, assustado
ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um
dos braços livres que Horace agitava loucamente conseguiu desferir um soco na
orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um
soco forte no nariz de Horace.
O
sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e
musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também
tinha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e
este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace
se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe
mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez
cair outra vez.
“Sempre
ataque primeiro”, Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram
praticando combate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will
mergulhou sobre ele e tentou prender seus braços atrás dos joelhos.
Então
Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi
levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
—
O que está acontecendo aqui, seus dois desordeiros? — perguntou a voz alta e
zangada em seu ouvido.
Will
se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de
guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com
dificuldade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de
Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou
em posição de sentido também.
—
Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado — sir Rodney
disse zangado. — E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will
e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do
mestre de guerra.
—
Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace
se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para
Will.
—
Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
—
Só uma briga, senhor — Will murmurou depois de hesitar um pouco.
—
Isso eu estou vendo! — o mestre de guerra berrou. — Não sou idiota, sabia?
Ele
fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a
acrescentar. Os dois ficaram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado.
Garotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam
brigando, estavam roubando ou quebrando alguma coisa.
—
Muito bem — ele disse finalmente. — A briga acabou. Agora, apertem as mãos e
esqueçam o assunto.
Ele
fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz
retumbante:
—
Façam o que mandei!
Estimulados
a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas,
assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser
resolvida.
“Nós
vamos terminar isso outra hora”, dizia o olhar zangado de Horace.
“Quando
você quiser”, os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.
CAPÍTULO 17
A
primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt
cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis
semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com
Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois
garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os
mantinham ocupados e seus caminhos raramente se cruzavam.
Will
tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasionalmente, mas sempre de longe. Eles
não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um
do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia
viria à tona.
Estranhamente,
essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não
que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que
podia encarar a idéia com uma certa tranquilidade. Ele sentia uma grande
satisfação quando se lembrava do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de
Horace. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do
incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na
presença de Jenny e — era ali que estava a surpresa — Alyss. Mesmo que o
acontecimento não tivesse produzido resultados concretos, ele ainda encerrava
muitos fatos que faziam Will pensar.
Mas
ele se deu conta de que não podia fazê-lo naquele momento, pois o tom de voz
zangado de Halt o arrastou de volta ao presente.
—
Será que podemos continuar procurando pegadas ou você tem alguma coisa mais
importante para fazer?
No
mesmo instante, Will se virou, tentando enxergar o que Halt tinha mostrado.
Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam
apenas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na cobertura clara e
regular. Eram pegadas deixadas por animais, e era tarefa de Will
identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho.
Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se
desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
—
Ali — Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will
ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
—
Coelho — ele disse prontamente, e Halt olhou de lado. — Coelho? — repetiu, e
Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
—
Coelhos — disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
—
Isso mesmo — Halt murmurou. — Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos,
você precisaria saber quantos eram.
—
Acho que sim — Will respondeu com humildade.
—
Você acha que sim? — Halt retrucou sarcástico. — Acredite, Will, há uma grande
diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will
balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido
no relacionamento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se
referia a ele como “garoto”. Naqueles dias, era sempre “Will”. Will gostava
disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro
com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou
outra quando dissesse o nome dele.
Ou
mesmo só uma vez.
A
voz baixa de Halt o arrancou de seus de-vaneios.
—
Pois bem... coelhos. Isso é tudo? Will olhou de novo. Era difícil enxergar na
neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série
de pegadas.
—
Um arminho! — disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
—
Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas
pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você
vir um sinal como esse, é uma indicação para procurar mais alguma coisa.
—
Entendi — Will disse, mas Halt balançou a cabeça.
—
Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que
trabalhar nisso.
Will
não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crítica. Tinha aprendido que Halt
não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem
salvá-lo.
Eles
continuaram a cavalgar em silêncio. Will examinava o chão ao redor deles com
atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram
aproximadamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos
conhecidos que lhes diziam que estavam perto da cabana quando uma coisa chamou
a atenção de Will.
—
Olhe! — ele exclamou, apontando para um trecho de neve remexida ao lado da
trilha. — O que é isso?
Halt
se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de
todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar
da beira da trilha e as analisou com atenção.
—
Hum — ele murmurou pensativo. — Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se
vêem muitas dessas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O
arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na
altura dos joelhos até as marcas.
—
O que é? — o garoto quis saber.
—
Porco selvagem — Halt disse apenas. — E dos grandes.
Will
olhou em volta nervoso. Ele talvez não soubesse qual era a aparência das
pegadas de um porco selvagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as
criaturas para saber que elas eram muito, mas muito perigosas.
Halt
percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
—
Relaxe — ele disse. — Ele não está por perto.
—
Você consegue dizer isso por causa das pegadas? — Will perguntou.
Ele
olhou para a neve fascinado. Os sulcos profundos obviamente tinham sido feitos
por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
—
Não — Halt respondeu com calma. — É por causa dos nossos cavalos. Se um porco
selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam
resfolegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir
nossos pensamentos.
—
Ah — Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele
afrouxou a mão que segurava o arco. Entretanto, apesar das palavras
tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta.
Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais depressa.
O
mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente.
Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com
Halt tinha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento,
não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas,
mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A
mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a
criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
—
Halt? — ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um
pouco.
Ele
se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava
que não.
Halt
olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção
para a qual o garoto estava olhando.
—
Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que
está escondido atrás desses arbustos — ele disse sério e em voz alta para que
chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No
mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa
gritando:
—
Não atire, meu bom senhor! Por favor, não atire! Sou só eu!
Os
arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada
se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé
ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se
com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava
armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
—
Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou
perigoso para pessoas como vocês!
Ele
correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta
cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o
intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era
extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo,
tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua
barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O
homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos
cobertos pela capa.
— Sou só eu — ele repetiu pela última vez
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