segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Literatura. com

Ordem dos arqueiros - John Flanagan


      Aclamada pela crítica do mundo todo. Da lista dos livros mais vendidos do New York Times. Publicada em mais de 14 países.
Rangers — Ordem dos Arqueiros, a série: uma leitura imperdível e emocionante do começo ao fim.
Durante a vida inteira, o pequeno e frágil Will sonhou em ser um forte e bravo guerreiro, como o pai, que ele nunca conheceu. Por isso, ficou arrasado quando não conseguiu entrar para a Escola de Guerra.
A partir daí, sua vida tomou um rumo inesperado: ele se tornou o aprendiz de Halt, o misterioso arqueiro, que muitos acreditam ter habilidades que só podem ser resultado de alguma feitiçaria. Relutante, Will aprendeu a usar as armas secretas dos arqueiros: o arco, a flecha, uma capa manchada e... um pequeno pônei muito teimoso.

          Podem não ser a espada e o cavalo que ele desejava, mas foi com eles que Will e Halt partiram em uma perigosa missão: impedir o assassinato do rei. Essa será uma viagem de descobertas e aventuras fantásticas, na qual Will aprenderá que as armas dos arqueiros são muito mais valiosas do que ele imaginava.













Prólogo





      Morgarath, senhor das Montanhas da Chuva e da Noite, ex-barão de Gorlan no Reino de Araluen, observou, talvez pela milésima vez, o seu domínio árido varrido pela chuva e amaldiçoado.
Aquilo era tudo o que lhe restava no momento: uma mistura de penhascos irregulares de granito de pedras arredondadas caídas e de montanhas geladas com desfiladeiros e gargantas íngremes e estreitas de cascalho e pedras, sem nenhuma planta para quebrar a monotonia.

Embora já tivessem se passado quinze anos desde que fora trazido de volta a esse reino proibido que se tornou sua prisão, ele ainda se lembrava das clareiras verdes e agradáveis, das colinas cobertas de bosques de seu antigo feudo, dos córregos cheios de peixes e dos campos com plantações e caça abundante. Gorlan tinha sido um lugar maravilhoso e animado. As Montanhas da Chuva e da Noite agora estavam mortas e desertas.
Um pelotão de Wargals treinava no pátio do castelo abaixo dele. Morgarath os observou por alguns segundos e escutou a cantilena gutural e ritmada que acompanhava todos os movimentos. Eles eram seres entroncados e deformados, com feições meio humanas, mas com focinhos de bicho e dentes parecidos com os de um urso ou um cachorro grande.
Longe do contato humano, os Wargals viveram e se reproduziram naquelas montanhas remotas desde tempos antigos. Ninguém se lembrava de ter visto um deles, mas boatos e lendas falavam de uma tribo selvagem de bestas semi-inteligentes nas montanhas. Morgarath, ao planejar uma revolta contra o Reino de Araluen, deixou o feudo de Gorlan para procurá-los. Se tais criaturas existissem, elas lhe dariam uma vantagem na guerra que se aproximava.
Passaram-se meses, mas ele os encontrou. Além da cantilena, os Wargals não usavam palavras para se comunicar e eram seres de pouco cérebro. Como resultado, foram facilmente dominados pela inteligência e força de vontade superiores de Morgarath, que os transformou no exército ideal: mais feios do que um pesadelo, extremamente impiedosos e totalmente escravizados por suas ordens mentais.

Agora, olhando para eles, lembrou-se dos cavaleiros bem vestidos com armaduras brilhantes que costumavam competir em torneios no Castelo de Gorlan, enquanto as damas os estimulavam e aplaudiam suas habilidades usando luvas de seda. Ao compará-los mentalmente com essas criaturas deformadas e cobertas por pêlos escuros, ele praguejou novamente.
Os Wargals, sintonizados com o pensamento dele, perceberam a sua perturbação, mexeram-se inquietos e pararam o que estavam fazendo. Zangado, Morgarath os fez voltar ao treinamento, e a cantilena recomeçou.
Morgarath se afastou da janela sem vidros e se aproximou do fogo, que parecia totalmente incapaz de acabar com a umidade e o frio do castelo sombrio. Quinze anos tinham se passado desde que se rebelara contra o recém coroado rei Duncan, um jovem de 20 e poucos anos. Confiando na indecisão e na confusão que dividiriam os outros barões logo após a morte do velho rei, Morgarath, para não perder a oportunidade de se apoderar do trono, tinha planejado tudo com muito cuidado, enquanto a doença do soberano avançava.
Secretamente, treinou o exército de Wargals e os reuniu nas montanhas, prontos para atacar no momento certo. Nos dias de confusão e sofrimento que se seguiram à morte do rei, quando os barões viajaram até o Castelo de Araluen para a cerimônia do funeral, deixando os seus exércitos sem líder, ele tinha atacado e invadido, em questão de dias, a parte sudeste do reino, derrotando as forças confusas e sem controle que tentaram resistir.
Duncan, jovem e inexperiente, nunca poderia enfrentá-lo. O reino estava lá para ser tomado. O trono era seu.
Então, lorde Northolt, chefe do exército do velho rei, reuniu alguns dos barões mais jovens numa aliança leal que apoiou Duncan e aumentou a vacilante coragem dos demais. Os exércitos se encontraram em Hackham Heath, perto do Rio Slipsunder, e a batalha ficou equilibrada durante 5 horas, com ataques, contra-ataques e muitas mortes. O Slipsunder era um rio raso, mas seus trechos traiçoeiros de areia movediça e lama macia formavam uma barreira intransponível que protegia o flanco direito de Morgarath.
Mas então um daqueles agitadores vestidos com capas cinzentas, conhecidos como Arqueiros, conduziu um grupo de cavalaria pesada através de uma passagem secreta, dez quilômetros rio acima. Os cavaleiros, protegidos por armaduras, surgiram num momento crucial da batalha e atacaram a retaguarda do exército de Morgarath.
Os Wargals, treinados no terreno cheio de rochas das montanhas, tinham um ponto fraco. Tinham medo de cavalos e nunca conseguiriam enfrentar a surpresa de um ataque como aquele. Eles se dividiram, recuaram para a passagem estreita de Três Passos e voltaram para as Montanhas da Chuva e da Noite. Morgarath, diante da rebelião derrotada, foi com eles. E ali ficou exilado durante esses quinze anos. Esperando, conspirando, detestando os homens que tinham sido responsáveis por seu destino.
O momento certo tinha chegado. Mais uma vez, ele lideraria os Wargals num ataque, mas agora teria aliados. E, desta vez, primeiro semearia o chão com incerteza e confusão. Nenhum dos que tinham conspirado contra ele seria deixado vivo para ajudar o rei Duncan.
Porque os Wargals não eram as únicas criaturas antigas e aterradoras que tinha encontrado naquelas montanhas sombrias. Ele tinha dois outros aliados ainda mais assustadores: as temíveis bestas conhecidas como Kalkaras.
Chegara o momento de soltá-las.





1!
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         — Tente comer alguma coisa, Will. Afinal, amanhã é um grande dia.
Jenny, loira, bonita e alegre, fez um gesto na direção do prato quase intocado de Will e sorriu para ele, encorajando-o. Will tentou retribuir o sorriso, mas não conseguiu. Ele remexeu o prato que tinha à sua frente, cheio de suas comidas favoritas. Naquela noite, por causa da tensão e da expectativa, Will quase não conseguia engolir uma garfada.
Ele sabia bem demais que o dia seguinte seria muito especial, o mais importante da sua vida, pois era o Dia da Escolha, que iria determinar como passaria o resto dos seus dias.
— Acho que é o nervosismo — disse George, abaixando o garfo cheio e ajeitando a lapela do casaco com ar de quem sabia o que estava falando.

Ele era um garoto magro, desengonçado e estudioso, fascinado por regras e regulamentações e com inclinação a examinar e discutir os dois lados de qualquer questão, às vezes durante horas.
— O nervosismo é uma coisa assustadora. Ele pode deixar você paralisado e impedi-lo de pensar, comer e falar.
— Não estou nervoso — Will retrucou depressa, notando que Horace tinha levantado a cabeça, pronto para deixar escapar um comentário sarcástico.
George balançou a cabeça várias vezes, pensando na declaração de Will.
— Por outro lado — ele acrescentou —, um pouco de nervosismo pode até melhorar o desempenho. Ele pode aumentar as suas percepções e aguçar suas reações. Assim, pode-se dizer que o fato de você estar preocupado, se é que realmente está, não é, necessariamente, algo com que se preocupar.
Mesmo sem querer, um sorriso irônico surgiu nos lábios de Will. George seria um ótimo advogado. Ele certamente seria escolhido pelo escriba na manhã seguinte. Talvez esse fosse o problema de Will. Ele era o único dos protegidos que tinha receios quanto à Escolha que iria ocorrer dali a doze horas.
— Ele deveria estar nervoso — Horace zombou. — Afinal, que mestre iria querê-lo como aprendiz?
— Tenho certeza de que todos estamos nervosos — Alyss disse, dirigindo um de seus raros sorrisos para Will. — Seria tolice não estar.
— Pois bem, eu não estou — Horace retrucou, corando quando Alyss o olhou com desconfiança e Jenny riu.
“Alyss sempre age assim”, Will pensou. Ele sabia que lady Pauline, chefe do Serviço Diplomático do Castelo Redmont, tinha prometido a posição de aprendiz à garota graciosa e alta. O fato de fingir nervosismo por causa do dia seguinte e o tato para não chamar atenção para a gafe de Horace mostravam que ela já tinha algumas habilidades como diplomata.
Jenny, é claro, iria imediatamente para a cozinha, domínio de mestre Chubb, cozinheiro chefe. Ele era um homem famoso em todo o reino pelos banquetes servidos na imensa sala de jantar do castelo, Jenny adorava cozinhar e tudo o que se referia à comida. Sua natureza calma e seu inesgotável bom humor fariam dela um membro valioso para a equipe na agitação das cozinhas do castelo.
A escolha de Horace seria a Escola de Guerra. Will olhou para o colega, que atacava avidamente a pilha de peru assado, presunto e batatas que estava amontoada no prato. Horace era grande para a idade e um atleta nato. As chances de ele ser recusado quase não existiam. Horace era exatamente o tipo de recruta que sir Rodney procurava para aprendiz de guerra: forte, atlético, em boa forma. “E não muito inteligente”, Will pensou com certa amargura. A Escola de Guerra era a melhor maneira de se tornar um cavaleiro para garotos como Horace nascidos no povo, mas com habilidades físicas para servir como cavaleiros do Reino.
E aí sobrava Will. Qual seria a sua escolha? Como Horace tinha comentado, o mais importante era saber que mestre de ofício iria aceitá-lo como aprendiz.
O Dia da Escolha era o momento principal na vida dos protegidos do castelo. Eles eram órfãos educados pela generosidade do barão Arald, o senhor do feudo Redmont. A maioria tinha perdido os pais a serviço do feudo, e o barão assumiu a responsabilidade de cuidar das crianças de seus ex-súditos — e de lhes dar a oportunidade de melhorar a vida sempre que possível.
O Dia da Escolha proporcionava essa chance.
Todos os anos, os protegidos que completavam 15 anos podiam se candidatar a aprendizes dos mestres de vários ofícios que serviam o castelo e seus habitantes. Geralmente, os aprendizes eram selecionados de acordo com as ocupações dos pais ou por influência dos mestres de ofício. Os protegidos do castelo normalmente não possuíam tal influência, e aquela era a chance de conquistar um futuro melhor.
Os protegidos que não eram escolhidos ou para quem não havia vagas seriam destinados a fazendeiros na vila próxima para trabalhar nas plantações e cuidar dos animais que alimentavam os habitantes do castelo. Will sabia que isso raramente acontecia. O barão e seus mestres de ofício geralmente faziam de tudo para encaixar os rapazes em alguma profissão. Mas isso talvez não acontecesse, e esse era o destino que ele mais temia.
Horace o estava observando e lhe lançou um olhar presunçoso.
— Você ainda pensa em se candidatar à Escola de Guerra, Will? — ele perguntou com a boca cheia de peru e batatas. — Então é melhor comer alguma coisa. Você precisa desenvolver um pouco esses músculos.
Ele soltou um riso rouco, e Will o olhou irritado. Algumas semanas antes Horace tinha ouvido Will confidenciar a Alyss que queria desesperadamente ser escolhido para a Escola de Guerra e, desde então, tinha tornado a vida dele um inferno, mostrando em todas as ocasiões possíveis que o corpo magro de Will era totalmente inadequado para os rigores do treinamento da escola.
O fato de que Horace provavelmente estava certo só piorava as coisas. Horace era alto e musculoso, enquanto Will era baixo e magro, ele era ágil, rápido e surpreendentemente forte, mas simplesmente não tinha o tamanho exigido para os aprendizes de Escola de Guerra. Apesar de tudo, ele esperou que nos últimos dias tivesse o que as pessoas chamavam de “arrancada no crescimento”, antes da chegada do Dia da Escolha. Mas isso não acontecera, e agora o dia estava próximo.
Como Will não respondeu, Horace percebeu que tinha marcado um ponto, o que era uma raridade em sua relação turbulenta. Nos últimos anos, ele e Will tinham entrado em choque várias vezes. Por ser mais forte do que o colega, Horace normalmente se saía melhor, embora algumas poucas vezes a velocidade e agilidade de Will tivessem lhe permitido desferir um chute ou soco surpresa e então escapar antes que Horace pudesse alcançá-lo.
Mas, embora Horace geralmente se saísse melhor nos confrontos físicos, raramente vencia algum de seus embates verbais. A mente de Will era tão ágil quanto o seu corpo, e ele quase sempre conseguia dar a última palavra. Na verdade, era essa tendência que muitas vezes causava problemas entre os dois: Will ainda tinha que aprender que dar a última palavra nem sempre era uma boa idéia. Horace decidiu então se aproveitar da vantagem ganha.
— Você precisa de músculos para entrar na Escola de Guerra, Will. Músculos de verdade — ele afirmou, olhando para os colegas ao redor da mesa para ver se alguém discordava.
Os demais protegidos, pouco à vontade diante da crescente tensão entre os dois, concentraram-se em seus pratos.
— Principalmente entre as orelhas — Will retrucou e, infelizmente, Jenny não conseguiu deixar de rir.
Horace corou e começou a levantar da mesa. Mas Will foi mais rápido e já estava na porta antes que o colega pudesse se livrar da cadeira e soltar um último insulto.
Isso mesmo! Fuja, Will Sem-nome! Você e um sem-nome e ninguém vai querer você como aprendiz!
Da ante-sala, Will escutou os risos e sentiu o sangue subir ao rosto. Ele detestava esse tipo de zombaria, mas, para não dar mais uma arma para Horace, evitava deixar que o colega percebesse isso.
A verdade era que ninguém sabia o sobrenome de Will nem sabia quem tinham sido seus pais. Ao contrário dos colegas, que tinham vivido no feudo antes da morte dos pais e cuja história familiar era conhecida, Will tinha aparecido ainda recém-nascido, aparentemente do nada. Ele fora encontrado embrulhado em um pequeno cobertor, dentro de um cesto, nas escadas do prédio dos protegidos há quinze anos. Um bilhete estava preso ao cobertor e dizia apenas:

A sua mãe morreu no parto.
O pai morreu como herói.
Por favor, cuidem dele. Seu nome é Will.

Naquele ano, tinha havido somente mais uma protegida. O pai de Alyss era um tenente da cavalaria que morreu na batalha de Hackman Heath, quando o exército de Wargals de Morgarath foi derrotado e expulso para as montanhas. A mãe de Alyss, arrasada pela dor, morreu devido a uma febre algumas semanas depois de dar à luz. Assim, havia bastante espaço para a criança desconhecida, e o barão Arald era, no fundo, um homem generoso. Mesmo que as circunstâncias fossem incomuns, ele tinha dado permissão para que Will fosse aceito como protegido no Castelo Redmont. Parecia lógico pressupor que, se o bilhete era verdadeiro, o pai de Will tinha morrido na guerra contra Morgarath. Como o barão Arald tinha tomado parte importante nessa batalha, sentiu-se no dever de honrar o sacrifício do pai desconhecido.
Assim, Will se tornou um protegido de Redmont e foi criado e educado devido à generosidade do barão. À medida que o tempo passou, outros além de Alyss se juntaram a ele, até que havia cinco crianças da mesma idade. Mas, ao passo que os outros tinham lembranças dos pais ou, no caso de Alyss, havia pessoas que os tinham conhecido e que podiam falar sobre eles, Will nada sabia de seu passado.
Foi por esse motivo que inventou a história que o tinha sustentado durante toda a infância naquela divisão do castelo. E, quando os anos passaram e acrescentou detalhes e cores à história, até ele começou a acreditar nela.
Will sabia que o pai tinha morrido como herói, portanto tinha sentido criar para ele uma imagem de ídolo — um guerreiro dentro de uma armadura brilhante que lutou contra as hordas de Wargals, combatendo-as de todas as formas possíveis até ser derrotado pelo peso da maioria. Tinha imaginado a figura alta do pai várias vezes, visto cada detalhe da armadura e de suas armas, mas sem nunca poder ver o seu rosto.
Como guerreiro, o pai iria querer que ele seguisse os seus passos. Por esse motivo, a seleção para a Escola de Guerra era tão importante para Will e, quanto mais improvável se tornava a sua escolha, mais ele se agarrava à esperança de que seria selecionado.
Ele saiu do prédio dos protegidos para a escuridão do pátio do castelo. O sol já tinha sumido fazia tempo e as tochas colocadas a cada 20 metros nas paredes lançavam uma luz trêmula e irregular. Ele hesitou um momento. Não iria voltar ao edifício e enfrentar os insultos contínuos de Horace. Fazer isso somente provocaria outra briga que Will provavelmente perderia. George certamente tentaria analisar a situação examinando os dois lados da questão. Will sabia que Alyss e Jenny talvez tentassem consolá-lo — principalmente Alyss, já que tinham crescido juntos. Mas naquele momento ele não queria a compreensão delas e não poderia enfrentar as zombarias de Horace, portanto se dirigiu para o único lugar em que poderia ficar sozinho.
A enorme figueira que crescia perto da torre central do castelo tinha lhe oferecido refúgio muitas vezes. Ele não tinha medo de altura e escalou a árvore com tranquilidade, continuando quando outros teriam parado, até chegar ao topo em que os galhos balançavam e se dobravam sob o seu peso. No passado, muitas vezes tinha escapado de Horace ali. O garoto maior não era tão rápido quanto Will e não estava disposto a segui-lo tão alto. Will encontrou uma forquilha conveniente e instalou-se nela, deixando o corpo se acostumar ao movimento da árvore enquanto os galhos balançavam na brisa da noite. Lá embaixo, os vultos diminutos dos vigias cumpriam a sua ronda no pátio do castelo.
Ele ouviu a porta do edifício se abrir e, ao olhar para baixo, viu Alyss procurá-lo, em vão, pelo pátio. A menina alta hesitou alguns instantes e então, parecendo dar de ombros, voltou para dentro. O retângulo de luz alongado que a porta aberta jogou no pátio desapareceu quando ela a fechou devagar. “Que estranho, as pessoas raramente olham para cima”, ele pensou.
Houve um leve bater de penas macias, e uma coruja pousou num galho próximo, girando a cabeça para captar os últimos raios da luz fraca com os olhos. Ela estudou o garoto sem preocupação, parecendo saber que não precisava ter medo dele. Era uma caçadora, uma voadora silenciosa, dona da noite.
“Pelo menos você sabe quem é”, ele disse baixinho para o pássaro. A coruja virou a cabeça outra vez e se jogou na escuridão, deixando Will sozinho com seus pensamentos.
Gradativamente, enquanto estava ali sentado, as luzes do castelo se apagaram, uma a uma. As tochas queimaram até o fim e foram substituídas à meia-noite na troca da guarda. Por fim, restou somente a luz do gabinete do barão, onde o lorde de Redmont ainda trabalhava, revendo relatórios e documentos. O gabinete estava praticamente no mesmo nível que Will, e ele podia ver o vulto musculoso do barão sentado à mesa. Finalmente, o barão Arald se levantou, espreguiçou-se e se inclinou para a frente para apagar a lamparina ao sair do aposento e se dirigir ao quarto de dormir no andar superior. Agora o castelo estava adormecido, exceto pelos guardas junto das paredes, que mantinham vigília constante.
Will se deu conta de que em menos de nove horas enfrentaria a Escolha. Silenciosamente, sofrendo, temendo o pior, desceu da árvore e dirigiu-se para a sua cama no dormitório escuro dos garotos.


2





          — Vamos, candidatos! Por aqui! Onde está a animação?
O orientador, Martin, secretário do barão Arald, mais gritava que falava. Quando a sua voz ecoou na ante-sala, os cinco protegidos se ergueram hesitantes dos longos bancos de madeira onde estavam sentados. Repentinamente nervosos agora que o dia tinha finalmente chegado, começaram a andar devagar, relutantes em ser o primeiro a passar pela grande porta de ferro que Martin abria para eles.
— Venham, venham! — ele convocava impaciente, quando Alyss finalmente decidiu ser a primeira, como Will imaginara que faria.

Os outros acompanharam a graciosa garota loira. Agora que alguém tinha resolvido dar o primeiro passo, os demais se contentaram em segui-lo.
Ao entrar no gabinete do barão, Will olhou ao redor curioso. Ele nunca tinha estado naquela parte do castelo antes. Aquela torre, que abrigava o setor administrativo e os aposentos particulares do barão, raramente era visitada pelos subordinados, como os protegidos do castelo. O aposento era imenso. O teto parecia dominá-lo, e as paredes eram feitas de blocos de pedra maciça unidos apenas por uma fina camada de argamassa. Na parede leste, havia uma janela enorme com grossas venezianas de madeira que podiam ser fechadas em caso de mau tempo. Will se deu conta de que era a mesma janela que ele tinha visto na noite passada. Naquele dia, o sol entrava por ela e caía na grande mesa de carvalho que o barão Arald usava como escrivaninha.
— Agora, venham! Fiquem em fila! Fiquem em fila!
Martin parecia estar gostando desse momento de autoridade.
O grupo andou lentamente para formar fila, e ele os observou com ar reprovador e a boca retorcida:
— Por ordem de tamanho! O mais alto no começo — ele disse, mostrando onde queria que o mais alto ficasse.
Aos poucos, o grupo se organizou. Horace, é claro, era o mais alto. Depois dele, Alyss tomou sua posição. Em seguida George, meia cabeça mais baixo do que ela e muito magro. Will e Jenny hesitaram. Jenny sorriu para o colega e, com um gesto, pediu que tomasse o lugar antes dela, mesmo que talvez fosse um centímetro mais alta. Aquela era uma atitude típica da Jenny. Ela sabia como Will sofria por ser o menor de todos os protegidos. Quando ele entrou na fila, a voz de Martin o interrompeu.

          — Você, não! A menina primeiro.
Jenny deu de ombros num pedido de desculpas e foi para o lugar que Martin havia indicado. Will ficou sendo o último da fila, desejando que Martin não tivesse deixado a sua pouca altura tão evidente.
— Vamos! Animem-se, animem-se! Agora, atenção! — Martin continuou, mas parou assim que uma voz grave o interrompeu.
— Acho que não precisamos de tudo isso, Martin.
Era o barão Arald, que tinha entrado despercebido por uma pequena porta atrás da mesa enorme. Martin colocou-se no que considerava uma posição de sentido, com os cotovelos magros afastados do corpo, os calcanhares juntos fazendo suas pernas tortas ficarem bem separadas na altura dos joelhos e a cabeça atirada para trás.
O barão Arald levantou os olhos para o céu. Às vezes, o zelo do secretário nessas ocasiões era um pouco exagerado. O barão era um homem grande e musculoso de ombros largos e cintura avantajada, como era necessário a um cavaleiro. Sabia-se bem, contudo, que o barão Arald gostava de comer e beber, de modo que o seu tamanho não se devia somente aos músculos.
Ele usava uma barba preta curta e bem aparada que, assim como os cabelos, começava a mostrar alguns fios brancos por causa de seus 42 anos. Seu maxilar era largo; o nariz, grande e escuro; e os olhos, atentos e cheios de humor, alojados debaixo de sobrancelhas espessas. O seu rosto denotava poder, mas também bondade. Will já tinha notado esse detalhe em ocasiões em que Arald tinha feito suas visitas raras aos alojamentos dos protegidos para ver como iam suas lições e seu desenvolvimento pessoal.
— Senhor! — Martin disse em voz alta, fazendo o barão estremecer um pouco. — Os candidatos estão reunidos.
Arald respondeu com paciência:
— Estou vendo. Que tal pedir aos mestres de ofício que se juntem a nós?
— Sim, senhor! — Martin respondeu, tentando bater os calcanhares.
Como usava sapatos de couro macio e flexível, a tentativa não resultou em nada. Ele marchou em direção à porta principal do gabinete, com seus cotovelos e joelhos magros salientes, fazendo Will se lembrar de um galo. Quando Martin colocou a mão na maçaneta, o barão o chamou mais uma vez.
— Martin? — ele disse suavemente.
Quando o secretário se virou e o olhou com curiosidade, o barão prosseguiu no mesmo tom calmo.
— Peça para virem. Sem gritar. Mestres de ofício não gostam disso.
— Sim, senhor — Martin concordou, parecendo um pouco decepcionado.
Ele abriu a porta e, com um esforço evidente para falar baixo, disse:
— Mestres de ofício, o barão está pronto.
Os chefes da escola de ofícios entraram no aposento sem ordem predeterminada. Como um grupo, eles se admiravam e respeitavam e raramente participavam de um procedimento tão formal. Sir Rodney, chefe da Escola de Guerra, entrou primeiro. Alto e de ombros largos como o barão, estava vestido a caráter, com malha de ferro por baixo de um manto branco adornado com a mesma figura do escudo: a cabeça vermelha de um lobo. Ele tinha ganho esse escudo quando jovem, lutando no mar da Escandinávia contra navios piratas que constantemente saqueavam a costa leste do Reino. Usava um cinturão e uma espada. Nenhum cavaleiro podia ser visto em público sem sua espada. Ele tinha mais ou menos a idade do barão, olhos azuis e um rosto que seria extremamente bonito não fosse pelo nariz quebrado.
Ostentava um bigode imenso, mas, ao contrário do barão, não usava barba.
Em seguida veio Ulf, o mestre da Cavalaria, responsável pelo cuidado e treinamento dos fortes cavalos de batalha do castelo. Tinha olhos castanhos cheios de esperteza, braços fortes e musculosos e punhos grossos. Usava um simples colete de couro sobre uma camisa de lã e calças coladas ao corpo. Altas botas de equitação feitas de couro macio cobriam os seus joelhos.
Lady Pauline seguiu-se a Ulf. Magra, elegante e de cabelos grisalhos, ela tinha sido muito bonita na juventude e ainda mostrava graça e estilo capazes de virar a cabeça dos homens. Lady Pauline, que tinha conquistado esse título por seu trabalho na política externa do Reino, era chefe do Serviço Diplomático em Redmont. O barão Arald tinha suas habilidades em alta conta, e ela era uma de suas mais íntimas conselheiras e confidentes. Arald dizia com frequência que meninas eram as melhores recrutas para o serviço diplomático. Elas costumavam ser mais sutis do que os rapazes, que gravitavam naturalmente para a Escola de Guerra. E, enquanto os garotos quase sempre usavam a força física para resolver problemas, as meninas sabiam usar a inteligência.
Talvez fosse apenas uma coincidência que Nigel, o mestre escriba, acompanhasse lady Pauline de perto. Eles discutiam assuntos de interesse mútuo enquanto esperavam o chamado de Martin. Além de colegas de profissão, Nigel e Pauline eram bons amigos. Eram os escribas treinados de Nigel que preparavam os documentos e comunicados oficiais que tantas vezes eram entregues pelos diplomatas de Pauline. Ele também dava conselhos sobre as palavras exatas a serem usadas nesses documentos e tinha profundos conhecimentos em assuntos legais. Nigel era um homem pequeno e magro, com um rosto inteligente e curioso que fazia Will se lembrar de um furão. Seus cabelos eram pretos e brilhantes, suas feições eram finas, e os olhos escuros nunca paravam de observar o aposento.
Mestre Chubb, o cozinheiro chefe, entrou por último. Como não poderia deixar de ser, ele era um homem gordo e barrigudo que usava uma jaqueta branca de cozinheiro e um chapéu alto. Dizia-se que tinha um gênio terrível e que podia se inflamar tão depressa quanto óleo derramado no fogo, portanto a maioria dos protegidos o tratava com muito cuidado. Com o rosto corado e cabelos ruivos que rareavam rapidamente, o mestre Chubb levava uma colher de pau para onde quer que fosse. Era um membro extra-oficial da equipe e também era usada muitas vezes como arma de ataque, aterrissando com um barulho forte na cabeça dos aprendizes mais descuidados, esquecidos e lentos. Entre os protegidos, Jennifer era a única que via Chubb como um tipo de herói. Ela já tinha declarado sua intenção de trabalhar para ele e aprender suas técnicas, com ou sem colher de pau.
Naturalmente, havia outros mestres. O armeiro e o ferreiro eram dois deles, mas somente os mestres de ofício que tinham vagas no momento para novos aprendizes se apresentariam naquele dia.
— Os mestres de ofício estão reunidos, senhor! — Martin anunciou elevando a voz, como se falar alto desse mais importância à ocasião.
Mais uma vez, o barão levantou os olhos para o céu.
— Como se eu não estivesse vendo — ele disse em voz baixa. — Bom-dia, lady Pauline. Bom-dia, senhores — ele acrescentou num tom mais formal.
Os presentes responderam, e o barão se virou mais uma vez para Martin.
— Será que podemos começar?
Martin balançou várias vezes a cabeça, consultou um maço de notas que segurava nas mãos e marchou até a fileira de candidatos.
— Muito bem, o barão está esperando! O barão está esperando! Quem vai ser o primeiro?
Will, de olhos baixos, apoiando o peso do corpo ora num pé, ora noutro, nervoso, de repente teve a estranha sensação de que estava sendo observado. Ele olhou para cima e, com surpresa, encontrou o olhar sombrio e misterioso de Halt, o arqueiro.
Will não o tinha visto e imaginou que ele tivesse usado uma porta lateral para entrar no aposento enquanto a atenção de todos estava voltada para os mestres de ofício. Agora ele estava parado atrás da cadeira do barão, ligeiramente inclinado para o lado, usando as suas roupas comuns, cinza e marrons, e coberto por sua longa túnica verde e cinza de arqueiro. Halt era uma pessoa assustadora que tinha o hábito de se aproximar quando menos se esperava e sem se fazer ouvir. Os moradores supersticiosos da vila acreditavam que os arqueiros praticavam uma forma de magia que os tornava invisíveis às pessoas comuns. Will não sabia se acreditava nisso. Ele se perguntou por que Halt estaria ali naquele dia. O homem não era reconhecido como um dos mestres de ofício e, até onde Will sabia, nunca tinha participado de uma sessão de Escolha antes.
Abruptamente, Halt tirou o olhar de Will, e este teve a impressão de que a luz tinha se apagado. Ele percebeu que Martin estava falando outra vez. O secretário tinha o hábito de repetir as frases como se fosse seguido pelo próprio eco.
— Então, quem será o primeiro? Quem será o primeiro?
— Por que não começamos com o primeiro da fila? — o barão sugeriu suspirando, e Martin acenou várias vezes com a cabeça.
— Claro, senhor. Claro. O primeiro da fila, dê um passo à frente e se aproxime do barão.
Depois de um momento de hesitação, Horace se adiantou e ficou em posição de sentido. O barão o analisou por alguns segundos.
— Seu nome? — ele perguntou, e Horace respondeu, sem saber exatamente como se dirigir ao barão.
— Horace Altman, senhor... meu senhor.
— E você tem alguma preferência, Horace? — o barão perguntou com ar de quem conhece a resposta antes mesmo de ouvi-la.
— Escola de Guerra, senhor! — Horace respondeu com firmeza. O barão acenou afirmativamente com a cabeça. Era o que imaginava. Ele olhou para Rodney, que, pensativo, estava analisando o garoto e avaliando suas qualidades.
— Mestre de guerra? — o barão chamou. Normalmente, ele chamava Rodney pelo primeiro nome, e não pelo título, mas aquela era uma ocasião formal. O mesmo se aplicava a Rodney, que, num dia como aquele, usava a forma “meu senhor”.
O grande cavaleiro deu um passo à frente, fazendo a malha de ferro e as esporas tinirem levemente enquanto ele se aproximava de Horace. Olhou o rapaz da cabeça aos pés e então passou por trás dele. A cabeça do garoto começou a acompanhar seu movimento.
— Quieto — sir Rodney ordenou, o menino ficou imóvel e olhou direto para a frente.
— Parece forte o suficiente, meu senhor, e sempre posso usar novos alunos — ele esfregou o queixo com a mão.
— Você sabe cavalgar, Horace?
Por um instante, quando percebeu que esse poderia ser um obstáculo para a sua escolha, Horace ficou sem saber o que dizer.
— Não, senhor, eu...
Ele estava para acrescentar que os protegidos do castelo tinham poucas oportunidades de aprender a cavalgar, mas sir Rodney o interrompeu.
— Não importa, você pode aprender.
O grande cavaleiro olhou para o barão e acenou.
— Muito bem, meu senhor, vou levar o garoto para a Escola de Guerra, onde ficará pelo período de três meses de experiência.
O barão escreveu algo numa folha de papel que se encontrava diante dele e sorriu levemente para o alegre e muito aliviado jovem à sua frente.
— Parabéns, Horace. Apresente-se à Escola de Guerra amanhã cedo, às 8 horas em ponto.
— Sim, senhor! — Horace respondeu com um largo sorriso. Ele se virou para sir Rodney e fez uma pequena reverência.
— Obrigado, senhor.
— Não me agradeça ainda — o cavaleiro respondeu com ar de mistério. — Você não sabe o que o espera.



3




       — Quem é o próximo? — Martin perguntou enquanto Hor­ace, com um grande sorriso, voltava para a fila.
Alyss se adiantou com graça, aborrecendo Martin, que queria indicá-la como a próxima candidata.
— Alyss Mainwaring, meu senhor — ela disse com a voz baixa e uniforme. Então, antes que lhe perguntassem qualquer coisa, continuou:
— Por favor, solicito uma indicação para o Serviço Diplomático, meu senhor.
Arald sorriu para a garota de aspecto solene. Ela tinha um ar de autoconfiança e dignidade que a ajudaria muito no Serviço. Ele olhou para lady Pauline.
— Senhora?
Ela concordou com um gesto de cabeça.
— Já falei com Alyss, meu senhor. Acredito que ela seja uma excelente candidata. Aprovada e aceita.

        Alyss curvou levemente a cabeça na direção da mulher que seria a sua mentora. Will pensou em como eram parecidas — as duas eram altas
e tinham movimentos elegantes e maneiras reservadas. Ele sentiu uma leve onda de prazer por sua colega mais antiga, pois sabia o quanto ela queria ser escolhida. Alyss voltou para a fila, e Martin, para não ser passado para trás novamente, já apontava para George.
— Muito bem! Você é o próximo! Você é o próximo! Dirija-se ao barão.
George deu um passo à frente. Sua boca abriu e fechou varias vezes, mas nenhum som saiu. Os demais protegidos o observavam surpresos. George, considerado há muito tempo advogado oficial deles para quase tudo, estava dominado pelo nervosismo. Finalmente, conseguiu dizer algo, mas em voz tão baixa que ninguém na sala o ouviu. O barão Arald se inclinou para a frente, com a mão em concha atrás da orelha:
— Desculpe, mas não entendi o que falou.
George olhou para o barão e, com enorme esforço, falou com voz ainda baixa.
— G-George Carter, senhor. Escola de Escribas, senhor.
Martin, sempre um defensor da correção, respirou fundo para repreendê-lo por sua fala truncada, mas, antes que pudesse fazê-lo e para alívio evidente de todos, o barão interferiu.
— Tudo bem, Martin. Deixe para lá.
Martin pareceu um pouco ofendido, mas se calou. O barão olhou para Nigel, o chefe dos escribas e responsável por assuntos legais, que estava com uma sobrancelha erguida, com ar de interrogação.
— Aceitável, meu senhor — Nigel declarou. — Já vi alguns trabalhos de George, e ele realmente tem o dom da caligrafia.
— Ele não impressiona muito como orador, não é mesmo, mestre? — o barão comentou em tom de dúvida. — Isso poderá ser um problema se tiver que oferecer aconselhamento legal no futuro.
— Eu lhe garanto, meu senhor, que com treinamento adequado esse tipo de falha não vai representar problema.
Entusiasmado com o tema, o mestre escriba juntou as mãos debaixo das mangas largas do hábito, parecido com o de um monge.
— Lembro-me de um garoto parecido com ele que esteve conosco há muitos anos. Ele tinha o mesmo hábito de murmurar, mas nós logo lhe mostramos como superar essa dificuldade. Alguns de nossos oradores mais hesitantes acabaram por ficar muito eloquentes, meu senhor, muito eloquentes.
O barão respirou fundo para responder, mas Nigel continuou seu discurso.
— Talvez o senhor fique surpreso em saber que, quando menino, eu sofria de uma terrível gagueira nervosa. Absolutamente terrível, meu senhor. Eu mal conseguia dizer duas palavras uma após a outra.
— Vejo que isso não é mais problema agora — o barão conseguiu comentar secamente, e Nigel sorriu e curvou-se para o barão.
— Exatamente, meu senhor. Nós vamos ajudar George a superar a sua timidez. Nada como a agitação da Escola de Escribas. Sem dúvida.
O barão não conseguiu evitar um sorriso. A Escola de Escribas era um lugar dedicado aos estudos onde raramente as vozes se erguiam e onde o debate lógico e racional reinava supremo. Pessoalmente, em suas visitas, tinha considerado o local extremamente monótono e não conseguia imaginar nada menos agitado.
— Acredito em você — ele retrucou. — Bem, George, pedido aceito. Apresente-se à Escola de Escribas amanhã.
George arrastou os pés desajeitado, resmungou algumas palavras, e o barão se inclinou outra vez, franzindo a testa ao tentar entender o que o rapaz tinha dito.
— O que você disse?
George finalmente olhou para cima.
— Obrigado, meu senhor.
E então voltou rapidamente para a fila.
— Ah! Não foi nada — o barão disse um tanto surpreso. — Agora, o próximo é...
Jenny já se adiantava. Loira e bonita, ela também era, para falar a verdade, um pouco gordinha. Mas os quilos a mais lhe caíam bem e, em qualquer reunião social, a moça era muito solicitada para dançar com os garotos, tanto os colegas dos protegidos, quanto os filhos dos funcionários do castelo.
— Mestre Chubb, senhor! — ela disse, aproximando-se da beira da escrivaninha.
O barão olhou para o rosto redondo da menina, viu a ansiedade brilhando naqueles olhos azuis e não conseguiu evitar sorrir para ela.
— O que tem ele? — o barão perguntou delicadamente e a moça hesitou, percebendo que, em seu entusiasmo, tinha atropelado o protocolo da Escolha.
— Oh! Perdão, senhor... meu... barão... — ela improvisou rapidamente, gaguejando enquanto tentava corrigir o modo de falar.
— Meu senhor! — Martin interrompeu. O barão Arald olhou para ele surpreso.
— Sim, Martin, o que foi?
Martin ficou constrangido, pois percebeu que seu mestre estava entendendo mal o propósito de sua interrupção.
— Eu... simplesmente queria informar que o nome da candidata é Jennifer Dalby, senhor — ele respondeu em tom de desculpas.
O barão assentiu, e Martin, um servo dedicado, viu o olhar de aprovação no rosto de seu patrão.
— Obrigado, Martin. Agora, Jennifer Dalby...
— Jenny, senhor — informou a garota.
— Jenny, então — o barão respondeu, dando de ombros resignado. — Suponho que você esteja se candidatando para ser aprendiz de mestre Chubb.
— Ah, sim, por favor, senhor! — Jenny respondeu sem fôlego, virando os olhos cheios de adoração para o cozinheiro corpulento e ruivo.
Chubb a olhou pensativo e de cara feia.
— Hum... pode ser, pode ser — ele balbuciou, andando de um lado a outro na frente dela.
A garota sorriu para ele simpática, mas Chubb era imune a esses artifícios femininos.
— Vou trabalhar duro, senhor — ela garantiu com seriedade.
— Sei disso! — ele retrucou um tanto divertido. — Eu vou garantir que sim, menina. Ninguém fica à toa conversando na minha cozinha, pode ter certeza.
Temendo que sua oportunidade pudesse estar escorregando por entre os dedos, Jenny usou o seu maior trunfo.
— Eu tenho o corpo ideal para isso — ela afirmou. Chubb tinha que concordar que ela era bem nutrida. Arald, não pela primeira vez naquela manhã, escondeu um sorriso.
— Ela tem razão nesse ponto, Chubb — ele comentou, e o cozinheiro virou-se para o barão, mostrando estar de acordo.
— O corpo é importante, senhor. Todos os grandes cozinheiros costumam ser... um pouco cheios.
Ele se virou para a moça ainda pensativo. Se os outros queriam aceitar seus alunos num piscar de olhos era problema deles, mas cozinhar era uma coisa especial.
— Diga-me — ele pediu à menina ansiosa —, o que você faria com uma torta de peru?
— Eu iria comê-la — Jenny respondeu imediatamente, sorrindo de modo encantador.
Chubb deu uma pancadinha na cabeça dela com a colher de pau.
— Eu estava me referindo ao modo de prepará-la.
Jenny hesitou, pensou e então iniciou uma longa descrição técnica de como assaria a sua obra-prima. Os outros quatro protegidos, o barão, os mestres de ofício e Martin ouviram tudo com certa admiração, porém sem entender nada do que ela dizia. Chubb, entretanto, assentiu várias vezes enquanto ela falava e a interrompeu quando ela deu detalhes sobre como abrir a massa.
— Você disse nove vezes? — ele perguntou curioso, e Jenny concordou, certa do que dizia:
— Minha mãe sempre dizia: “Oito vezes para deixá-la folhada e mais uma vez com um toque de amor.”
Chubb assentiu pensativo.
— Interessante. Interessante — ele comentou, olhando então para o barão. — Vou ficar com ela, meu senhor.
— Que surpresa — o barão retrucou com suavidade. — Muito bem, apresente-se na cozinha pela manhã, Jennifer — ele acrescentou.
— Jenny, senhor — a menina corrigiu novamente com um sorriso que iluminou a sala.
O barão Arald sorriu e observou o pequeno grupo diante dele.
— Ainda temos mais um candidato.
Ele consultou a lista e então olhou para Will, que estava inquieto. O barão lhe fez um gesto de encorajamento.
Will deu um passo à frente, sentindo o nervosismo secar sua garganta de repente e fazer que sua voz se transformasse num mero sussurro.
— Will, senhor. O meu nome é Will.


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         — Will? Will de quê? — Martin perguntou exasperado, examinando as folhas de papel que continham os detalhes sobre os candidatos. Ele era secretário do barão há apenas cinco anos e por isso não conhecia a história de Will. Percebeu então que não havia um sobrenome nos documentos do garoto e ficou aborrecido por achar que tinha deixado passar esse erro.
— Qual é o seu sobrenome, menino? — ele perguntou com severidade.
Will olhou para ele hesitante, odiando aquele momento.
— Eu... não tenho... — ele começou, mas felizmente o barão intercedeu.
— Will é um caso especial, Martin — ele informou com calma e com um olhar que ordenava que o secretário esquecesse o assunto.
Em seguida, virou-se para Will com um sorriso encorajador.

          — A que escola quer se candidatar, Will? — ele perguntou.
— Para a Escola de Guerra, por favor, meu senhor. — Will respondeu, tentando parecer confiante em sua escolha.
O barão franziu a testa, e Will sentiu as esperanças desaparecerem.
— Escola de Guerra, Will? Você não acha que é... um pouco pequeno para isso? — o barão perguntou com delicadeza.
Will mordeu o lábio. Ele tinha se convencido de que, se desejasse muito, se acreditasse bastante em si mesmo, seria aceito, mesmo com suas falhas evidentes.
— Eu ainda não passei pela “arrancada no crescimento”, senhor. — ele disse desesperado. — Todos dizem isso.
O barão esfregou a barba com o polegar e o indicador ao analisar o garoto parado diante dele e olhou para o mestre de guerra.
— Rodney? — ele chamou.
O alto cavaleiro se adiantou, examinou Will por alguns instantes e lentamente balançou a cabeça.
— Sinto dizer que ele é muito pequeno, meu senhor. — ele disse. Will sentiu um aperto no coração.
— Sou mais forte do que pareço, senhor. — ele garantiu.
Mas o mestre de guerra não se deixou convencer pela afirmação.
Ele olhou para o barão, deixando claro que a situação o desagradava, e balançou a cabeça.
— Alguma outra opção, Will? — o barão perguntou com gentileza e preocupação.
Will hesitou por um longo momento. Ele nunca tinha considerado outra escolha.
— Escola de Cavalaria, senhor? — ele perguntou finalmente.
A Escola de Cavalaria treinava e cuidava dos poderosos cavalos de batalha usados pelos cavaleiros do castelo. Will pensou que, pelo menos, seria uma ligação com a Escola de Guerra. Mas Ulf, o mestre da cavalaria, já estava balançando a cabeça antes mesmo de o barão pedir sua opinião.
— Preciso de aprendizes, meu senhor, mas este é pequeno demais. Ele nunca vai conseguir controlar um de meus cavalos. Vão pisoteá-lo assim que olharem para ele.
Naquele momento, Will só conseguia enxergar o barão através de uma névoa esfumaçada. Ele lutava desesperadamente para evitar que as lágrimas escorressem pelo rosto. Ser rejeitado pela Escola de Guerra, perder o controle e chorar como um bebê na frente do barão, dos mestres de ofício e de seus colegas seria muito humilhante.
— Quais são as suas qualidades, Will? — o barão perguntou. Ele pôs a cabeça para funcionar. Não era bom nas aulas e em línguas como Alysson, não conseguia formar letras bonitas e perfeitas como George nem se interessava por culinária como Jenny.
E, certamente, não tinha os músculos e a força de Horace.
— Sei escalar muito bem, senhor — disse finalmente, percebendo que o barão esperava sua resposta.
Mas logo se deu conta de que tinha cometido um erro, pois Chubb, o cozinheiro, olhou para ele zangado.
— Ele sabe escalar, sim, senhor. Eu lembro quando subiu numa calha na minha cozinha e roubou uma bandeja de bolinhos que estavam esfriando no peitoril da janela.
Will ficou desanimado. Aquilo tinha acontecido há séculos! Ele quis contar que era uma criança na época e que tinha sido apenas uma brincadeira infantil. Mas agora o mestre escriba também estava falando.
— Na última primavera, ele subiu até o nosso gabinete no segundo andar e soltou dois coelhos durante um de nossos debates sobre questões legais. Extremamente lamentável.
— Coelhos, mestre escriba? — o barão perguntou, e Nigel assentiu vigorosamente.
— Um casal, meu senhor, se o senhor me entende — ele respondeu. — Extremamente lamentável!
Sem que Will visse, a muito séria lady Pauline colocou a mão na frente da boca num gesto elegante. Talvez ela estivesse disfarçando um bocejo, mas, quando retirou a mão, ainda foi possível entrever o final de um sorriso.
— Bem, sim — comentou o barão. — Nós todos sabemos como são os coelhos.
— E, como eu disse, era primavera — Nigel continuou, caso o barão não tivesse entendido.
Lady Pauline deixou escapar uma tosse nada feminina. O barão olhou para ela surpreso.
— Acho que compreendemos, mestre escriba — ele disse, voltando a olhar para a figura desesperada à sua frente.
Will manteve o queixo erguido e olhava direto para a frente. O barão sentiu pena do jovem naquele momento. Ele podia ver as lágrimas se formando nos olhos vivos e castanhos, presas somente por uma determinação de ferro. “Força de vontade”, pensou. Não lhe agradava fazer o garoto passar por tudo aquilo, mas era assim que tinha que ser. Ele suspirou silenciosamente.
— Há alguém que possa usar esse garoto? — ele perguntou. Contra sua vontade, Will virou a cabeça e olhou suplicante para a fila de mestres de ofício, rezando para que um deles cedesse e o aceitasse. Um por um, em silêncio, eles sacudiram a cabeça negativamente.
Surpreendentemente, foi o arqueiro quem quebrou o desagradável silêncio da sala.
— Há uma coisa que o senhor deve saber sobre este garoto, meu senhor — ele disse com uma voz grave e suave.
Aquela era a primeira vez que Will o ouvia falar. Ele se adiantou e entregou uma folha de papel dobrada ao barão. Arald a abriu, leu as palavras nela escritas e franziu a testa.
— Você tem certeza disso, Halt?
— Absoluta, meu senhor.
O barão dobrou o papel com cuidado e o colocou na mesa. Ele tamborilou os dedos no tampo da mesa e disse:
— Vou ter que pensar nisso durante a noite.
Halt concordou e deu um passo para trás, parecendo desaparecer no fundo. Will o olhou com ansiedade, perguntando-se que informação a figura misteriosa tinha passado ao barão. Como a maioria das pessoas, Will tinha crescido acreditando que era melhor evitar os arqueiros. Eles faziam parte de um grupo secreto e místico, envolto em mistério e incerteza, o que, por sua vez, levava ao medo.
Will não gostou da idéia de que Halt sabia algo a seu respeito — algo que era importante o bastante para chamar a atenção do barão naquele dia. A folha de papel continuava ali, torturantemente perto, no entanto impossível de ser alcançada.
O garoto percebeu um movimento ao seu redor. O barão estava falando com outras pessoas na sala.
— Felicitações aos que foram escolhidos hoje. Este é um grande dia para todos, portanto vocês têm o resto dele livre. Aproveitem. As cozinhas prepararão um banquete no seu alojamento e durante o resto da tarde vocês estão livres para visitar o castelo e a vila. Amanhã cedo, apresentem-se aos seus novos mestres de ofício. E, se quiserem aceitar um conselho, sejam pontuais — ele sorriu para os quatro e então se dirigiu para Will com uma ponta de simpatia na voz.
— Will, amanhã vou dizer o que decidi a seu respeito — ele se virou para Martin e fez um gesto para que conduzisse os aprendizes para fora. — Obrigado a todos — ele disse, saindo do aposento pela porta atrás da mesa.
Os mestres de ofício deixaram a sala e Martin conduziu os protegidos até a saída. Eles conversavam entusiasmados, aliviados e satisfeitos por terem sido aceitos pelos mestres de sua escolha.
Will ficou para trás, hesitando diante da folha de papel ainda na mesa. Ele olhou para ela por um instante como se pudesse, de alguma forma, enxergar as palavras escritas do outro lado. Teve a mesma impressão de que alguém o observava, como antes. E então se defrontou com os olhos escuros do arqueiro, que tinha ficado atrás da cadeira de encosto alto do barão, quase invisível embaixo de seu estranho manto.
Will estremeceu num repentino momento de medo e saiu apressado da sala.