terça-feira, 20 de setembro de 2011


CAPÍTULO 9

Horace soltou a mochila no chão do dormitório e se jogou na cama, gemendo aliviado.
Todos os músculos de seu corpo doíam. O garoto não tinha idéia de que podia se sentir tão dolorido, tão esgotado, e de que existiam tantos músculos que podiam ficar daquele jeito. Ele se perguntou, não pela primeira vez, se conseguiria atravessar os três anos de treinamento da Escola de Guerra. Era cadete há menos de uma semana e já estava se sentindo um trapo.
Quando se candidatou para a Escola de Guerra, Horace tinha uma imagem vaga de cavaleiros de armadu-ras brilhantes lutando, enquanto pessoas comuns olhavam admiradas. Várias dessas pessoas eram garotas bonitas; Jenny, sua companheira no prédio dos protegidos, se des-tacava entre elas. Para ele, a Escola de Guerra era um lu-gar de aventuras e magia, e os cadetes que dela participa-vam eram pessoas que os outros respeitavam e invejavam.
A realidade era bem diferente. Até aquele momen-to, os cadetes da Escola de Guerra se levantavam antes do amanhecer e passavam uma hora antes do café-da-manhã
fazendo uma série de exercícios físicos: corriam, levanta-vam peso, carregavam enormes troncos em grupos de dez. Exaustos depois de tudo isso, voltavam ao alojamento, onde tomavam um banho rápido com água fria antes de deixar os dormitórios e os banheiros totalmente limpos. Uma inspeção cuidadosa era feita depois disso. Sir Karel, o velho e esperto cavaleiro que a realizava, conhecia todos os truques para fazer uma limpeza malfeita, arrumar mal as camas e guardar roupas sem cuidado. O menor erro por parte de um dos 20 meninos do dormitório fazia que to-das as roupas fossem espalhadas, as camas fossem desfei-tas e o lixo fosse jogado no chão, eles então tinham que fazer tudo de novo no tempo em que deveriam estar to-mando café.
Como resultado, os novos cadetes tentavam enga-nar sir Karel apenas uma vez. O café-da-manhã não era nada especial. Na verdade, na opinião de Horace, era o mínimo que se podia esperar, mas a sua falta significava uma longa manhã até a hora do almoço, que, de acordo com a vida simples na Escola de Guerra, durava somente vinte minutos.
Depois do café, havia aulas de duas horas sobre história militar, teoria de táticas, e assim por diante, e en-tão os cadetes participavam de uma corrida de obstáculos: uma série de barreiras criadas para testar velocidade, agili-dade, equilíbrio e força. O percurso deveria ser comple-tado em menos de cinco minutos, e os cadetes que não conseguiam tinham que recomeçar imediatamente. Era
difícil alguém conseguir completar o percurso sem cair pelo menos uma vez. O caminho estava repleto de poças de lama, perigos e fossos cheios um líquido irreconhecível e desagradável que Horace não queria saber de onde vi-nha.
O almoço vinha depois da corrida de obstáculos, mas se alguém tinha caído durante a atividade precisava se lavar antes de entrar no refeitório, o que significava outro banho frio — e gastar metade do tempo destinado para a refeição. Como resultado, as impressões fortes de Horace sobre a primeira semana na Escola de Guerra combina-vam músculos doloridos com fome torturante.
Depois do almoço, havia mais aulas e exercícios fí-sicos no pátio do castelo sob a vigilância de um dos cade-tes mais velhos. Depois, a classe formava fila e realizava exercícios em grupo até o fim do dia, quando tinha duas horas livres para limpar e consertar o equipamento e pre-parar lições para as aulas do dia seguinte.
Isso, é claro, se ninguém tinha causado problemas durante o dia ou irritado algum instrutor. Nesse caso, to-dos eram convidados a encher as mochilas com pedras e partir numa caminhada de 12 quilômetros numa trilha no campo. Essas caminhadas nunca eram realizadas em es-tradas planas próximas, mas em terrenos acidentados, morros e riachos, trechos fechados por arbustos espi-nhentos que dificultavam a passagem.
Horace tinha acabado de completar uma dessas caminhadas. No começo daquele dia, um dos colegas ti-
nha sido visto passando um bilhete na aula de tática. Infe-lizmente, a nota era uma caricatura desrespeitosa do ins-trutor de nariz comprido. Infelizmente também, o garoto era um desenhista habilidoso e o retrato foi reconhecido imediatamente.
Como resultado, Horace e a classe tinham sido convidados a encher as mochilas e começar a correr.
Lentamente, ele começou a se afastar dos outros garotos enquanto eles subiam a primeira colina com es-forço. Depois de alguns dias, o regime rígido da Escola de Guerra estava começando a mostrar resultados em Hora-ce. Além de suas habilidades naturais de atleta, seu prepa-ro físico estava melhor do que nunca. Apesar de não per-ceber, ele corria com equilíbrio e elegância em ocasiões em que os outros mostravam dificuldades. Pouco tempo depois, Horace já estava bem adiantado e continuava a subir de cabeça erguida, respirando tranquilamente. Até aquele momento não havia tido muitas chances de co-nhecer os colegas. Ele os tinha visto pelo castelo ou na vila nos anos passados, mas crescer no prédio dos prote-gidos o havia isolado da vida diária normal do castelo e da vila. As crianças da ala dos protegidos sentiam-se diferen-tes das outras, e os meninos e meninas que ainda tinham seus pais pensavam da mesma forma.
A cerimônia da Escolha acontecia somente para os protegidos. Horace era um dos 20 novos recrutas daquele ano, e os demais tinham sido escolhidos pelo processo normal, isto é, influência dos pais, apoio ou recomendação
de professores. Como resultado, ele era considerado uma curiosidade, e os outros meninos não tinham dado sinais de amizade nem feito nenhuma tentativa de conhecê-lo. “Mesmo assim”, ele pensou sorrindo com uma satisfação um pouco triste, “venci todos na corrida”. Nenhum dos outros tinha voltado ainda. Tinha mesmo superado todos eles.
A porta no fim do dormitório se abriu com violên-cia e botas pesadas fizeram barulho no piso de madeira. Horace apoiou o corpo num cotovelo e gemeu em silên-cio.
Bryn, Alda e Jerome marcharam em sua direção entre as fileiras de camas arrumadas com perfeição. Eles eram cadetes do 2° ano e pareciam ter decidido que sua principal função na vida era atormentar Horace. Depressa, ele girou as pernas para um dos lados da cama e se levan-tou, mas não foi rápido o bastante.
— O que você está fazendo deitado na cama? — Alda gritou. — Quem disse que é hora de dormir?
Bryn e Jerome sorriram, pois gostavam do jeito de falar do colega. Eles não tinham muita imaginação, mas compensavam a falta de criatividade com uma grande confiança na sua força física.
— Vinte flexões! — Bryn ordenou. — Agora!
Horace hesitou um momento. Ele era bem maior do que qualquer um dos garotos. Se houvesse um con-fronto, tinha certeza de que poderia vencê-los. Mas eles eram três e, além disso, tinham a autoridade da tradição
que os apoiava. Até onde sabia, tratar os cadetes do 1° ano dessa forma era prática normal, e ele podia imaginar a zombaria dos colegas se reclamasse para algum superior. “Ninguém gosta de chorões”, disse a si mesmo enquanto se abaixava. Mas Bryn percebeu a hesitação e talvez até um brilho passageiro de revolta em seu olhar.
— Trinta flexões! — ele disparou. — Já!
Com os músculos doloridos, Horace se esticou no chão e começou os exercícios. Imediatamente, sentiu um pé nas costas empurrando-o para baixo quando tentava se erguer.
— Vamos, nenê! — Jerome zombou. — Um pou-co mais de força!
Horace conseguiu levantar o corpo, pois Jerome sabia como manter exatamente a quantidade de pressão ideal. Um pouco mais de força, e Horace nunca seria ca-paz de completar o exercício. Mas o cadete do 2° ano também o empurrou para baixo quando Horace ia reinici-ar, o que tornou o exercício ainda mais difícil. Ele teve que fazer força para o alto ao mesmo tempo em que abai-xava o corpo, pois do contrário seria jogado no chão. Gemendo, terminou a primeira flexão e começou outra.
— Pare de chorar, bebê! — Alda gritou para ele antes de se aproximar da cama de Horace. — Você fez a cama hoje? — ele gritou.
Horace, lutando contra a pressão do pé de Jerome, só conseguiu grunhir uma resposta.
— O quê? O quê? — Alda se abaixou e aproximou o rosto de Horace.
— O que você disse, bebê? Fale mais alto!
— Sim... senhor! — Horace conseguiu sussurrar. Alda balançou a cabeça de um jeito exagerado.
— Acho que a resposta é “não, senhor” — ele dis-se, levantando-se.
— Olhe só essa cama! Está uma porcaria!
É claro que as cobertas estavam um pouco amas-sadas onde Horace tinha se deitado, mas ele poderia ar-rumá-la num instante. Sorrindo, Bryn resolveu deixar o plano de Alda mais interessante. Ele se aproximou e chu-tou a cama para o lado, derrubando o colchão, os cober-tores e o travesseiro no chão. Alda ajudou, chutando as cobertas pelo quarto.
— Faça a cama de novo! — ele gritou.
Nesse momento, surgiu um brilho em seus olhos. Ele se virou para a cama seguinte, chutou-a também e es-palhou o colchão e os lençóis como tinha feito com a de Horace.
— Faça tudo de novo! — ele berrou satisfeito com sua idéia. Bryn se juntou a ele, rindo enquanto os dois re-viravam as 20 camas e espalhavam cobertores e travessei-ros pelo quarto. Horace, ainda lutando para fazer as 30 flexões, fechou os dentes com força enquanto o suor es-corria para os seus olhos, fazendo-os arder e embara-lhando sua visão.
— Está chorando, bebê? — ele escutou Jerome perguntar. — Vá para casa chorar no colo da mamãe!
O garoto empurrava as costas de Horace com for-ça, fazendo-o se esparramar no chão.
— O bebê não tem mãe — Alda disse. — O bebê é um protegido. A mamãe fugiu com um marinheiro.
— É verdade, bebê? A mamãe fugiu e abandonou você? — Jerome se abaixou e perguntou.
— A minha mãe morreu! — Horace respondeu ir-ritado. Zangado, começou a se levantar, mas o pé de Je-rome estava em seu pescoço e empurrou seu rosto em di-reção ao chão de madeira. Horace desistiu de levantar.
— Que coisa triste — Alda comentou, fazendo os dois amigos rirem. — Agora arrume essa bagunça, bebe-zão, ou vamos fazer você refazer a corrida.
Horace ficou deitado exausto. Os três garotos mais velhos saíram do quarto chutando baús e espalhando os pertences dos colegas no chão. Ele fechou os olhos quando o suor salgado os fez arder de novo.
— Detesto este lugar — ele resmungou com a voz abafada pelas tábuas ásperas do chão.

CAPÍTULO 10

— Está na hora de você conhecer as armas de que vai precisar — Halt informou.
Eles tinham tomado o café-da-manhã muito antes do nascer do sol, e Will acompanhou Halt até a floresta. Andaram por mais ou menos meia hora, e Halt aproveitou para mostrar a Will como deslizar de uma sombra até ou-tra fazendo o menor barulho possível. Will era um bom aluno na arte de se mover sem ser visto, como Halt já ti-nha observado, mas tinha muito a aprender até reunir to-das as habilidades de um arqueiro. Mesmo assim, Halt es-tava satisfeito com o progresso do garoto, que tinha von-tade de aprender, especialmente quando se tratava de au-las em campo como aquelas.
O assunto era um pouco diferente quando se trata-va de tarefas menos interessantes, como leitura de mapas e desenho de gráficos, pois Will costumava passar por ci-ma de detalhes que considerava sem importância.
— Você daria mais importância a essas habilidades se estivesse planejando o caminho a ser seguido por um
exército e se esquecesse de falar da existência de um cór-rego no trajeto. — Halt comentou com seriedade.
Eles pararam numa clareira e Halt deixou cair no chão uma pequena sacola que estava escondida debaixo de sua capa.
Will olhou a bolsa desconfiado. Quando falaram em armas, o garoto pensou em espadas e lanças, as armas usadas pelos cavaleiros. Aquele pequeno pacote não tinha nada a ver com o que ele imaginara.
— Que tipos de armas nós usamos? Espadas? — Will perguntou com os olhos grudados na sacola.
— As principais armas de um arqueiro são o se-gredo, o silêncio e a habilidade de agir sem ser visto. Mas, se elas falharem, talvez você tenha que lutar.
— E então usamos uma espada? — Will perguntou esperançoso. Halt se ajoelhou e abriu a trouxa.
— Não, nós usamos um arco — ele disse, colo-cando o objeto aos pés do menino.
A primeira reação de Will foi de desapontamento. As pessoas usavam arcos para caçar. Todo mundo tinha um arco. Era mais um instrumento do que uma arma. Quando criança, ele mesmo construíra vários curvando galhos de árvore verdes. Então, como Halt não disse nada, ele olhou o objeto com mais atenção. Aquele não era um galho curvado.
A arma era diferente de tudo o que Will já tinha visto. Quase todo o arco formava uma curva comprida, como todos os outros, mas suas pontas eram viradas na
direção contrária. Will, como a maioria das pessoas do reino, estava acostumado aos arcos normais, que se cur-vavam numa linha contínua, mas esse era bem mais curto.
— Ele se chama arco recurvo — Halt informou, percebendo a curiosidade do garoto. — Você ainda não tem força suficiente para lidar com um arco comum, por-tanto este vai lhe dar a velocidade e o impulso necessários. Aprendi a fazê-los com os temujais.
— Quem são os temujais? — Will quis saber, des-viando o olhar do arco estranho.
— São guerreiros corajosos do leste e também os melhores arqueiros do mundo — Halt contou.
— Você lutou contra eles?
— Contra... e com eles durante algum tempo — Halt disse. — E pare de fazer tantas perguntas.
Outra vez, Will olhou para o arco, que estava na sua mão. Agora que estava se acostumando com seu for-mato diferente, viu que era uma arma muito bem-feita. Muitas tiras de madeira de grossuras diferentes tinham si-do coladas umas às outras, e seus veios corriam em várias direções. Era isso que formava a curva dupla do arco, como se diferentes forças empurrassem uma às outras, dando aos pedaços do objeto uma forma cuidadosamente planejada. Talvez aquela fosse mesmo uma arma, afinal.
— Posso usá-lo?
— Se você acha que é uma boa idéia — Halt con-cordou com um gesto de cabeça.
Will escolheu uma flecha do estojo que também ti-nha estado na sacola e a ajustou à corda. Ele puxou a fle-cha para trás com o polegar e o indicador, mirou o tronco de uma árvore a uns 20 metros de distância e atirou.
A corda pesada do arco bateu na carne macia do lado de dentro de seu braço como um chicote. Will gritou de dor e largou a arma como se estivesse pegando fogo.
Uma marca grossa, vermelha e dolorida estava se formando na pele. Will não tinha idéia de onde o arco ti-nha ido parar, mas nem se importou com isso.
— Que dor! — ele disse, olhando para o arqueiro de um jeito acusador.
— Você é sempre muito apressado, rapaz — Halt comentou, sacudindo os ombros. — Talvez assim apren-da a esperar um pouco na próxima vez.
Ele se abaixou, tirou da sacola um punho comprido de couro duro e o colocou no braço esquerdo de Will para protegê-lo da corda do arco. Chateado, o menino perce-beu que Halt estava usando um punho parecido. Mais chateado ainda, lembrou que o tinha visto antes, mas não se perguntou para que servia.
— Agora, tente outra vez — Halt sugeriu.
Will escolheu outra flecha e a colocou na corda, mas, quando a puxou para trás, Halt o fez parar.
— Não com o polegar — Halt ensinou. — Deixe que a flecha fique apoiada entre o primeiro e o segundo dedos na corda... assim.
Ele mostrou a Will como o entalhe no fim do arco prendia a corda e mantinha a flecha no lugar. Depois Halt demonstrou como fazer que a corda se apoiasse nas juntas dos três primeiros dedos e finalmente como soltar a corda para que a flecha disparasse.
— Assim está melhor — ele disse. — Tente usar os músculos das costas, e não só os seus braços. Procure deixar suas omoplatas juntas... — Halt ensinou quando Will puxou a flecha para trás.
Will fez como Halt sugeriu e teve a impressão de que o arco ficou mais leve e de que podia segurá-lo com mais firmeza. Ele soltou a flecha de novo, mas não con-seguiu acertar o tronco da árvore que tinha escolhido co-mo pontaria.
— Você precisa praticar — Halt disse. — Solte o arco por enquanto.
Com cuidado, Will colocou o arco no chão. Ele es-tava ansioso para ver o que Halt iria tirar da sacola em se-guida.
— Estas são as facas usadas pelos arqueiros — Halt lhe entregou um estojo duplo igual ao que ele carre-gava do lado esquerdo do cinto.
Will o pegou e o examinou. As facas estavam colo-cadas uma em cima da outra. A primeira era pequena, com um cabo grosso e pesado feito de uma série de discos de couro colados um no outro. Havia uma cruzeta de bronze entre o punho e a lâmina e um botão na ponta que com-binava com ela.
— Tire a faca do estojo com cuidado — Halt pe-diu.
Will tirou a faca curta da bainha e notou que ela ti-nha um formato diferente. Era estreita no cabo, alarga-va-se no meio e tornava a se afinar na ponta extremamen-te afiada. O garoto olhou para Halt curioso.
— Foi feita para ser atirada. A largura dela com-pensa o peso do cabo, e a combinação do peso dos dois ajuda a fazê-la chegar aonde você quer quando atirada. Olhe.
A mão de Halt se moveu com suavidade e rapidez para a faca de lâmina larga que carregava na cintura. Ele a tirou da bainha e, com um movimento leve, atirou-a numa árvore próxima.
A faca bateu no tronco com um barulho forte. Will olhou para o arqueiro, impressionado com sua habilidade e velocidade.
— Como você aprendeu a fazer isso? — ele per-guntou.
— Prática — Halt respondeu, fazendo um gesto para que Will examinasse a outra faca.
A segunda faca era mais comprida. O cabo era feito com os mesmos discos de couro e tinha uma cruzeta curta e firme. A lâmina era pesada e reta, muito afiada num dos lados, grossa e pesada no outro.
— Essa é para o caso em que o inimigo chega muito perto — Halt explicou. — Mas, se você for um ar-queiro, isso nunca vai acontecer. Ela serve para ser atirada,
mas essa lâmina também pode bloquear o ataque de uma espada. Foi feita pelos melhores ferreiros do reino. Cuide dela e a mantenha afiada.
— Está bem — o aprendiz concordou, admirando a faca que tinha nas mãos.
— Ela é parecida com uma faca usada pelos escan-dinavos — Halt informou. — Serve como faca e ferra-menta. Repare que a qualidade do aço da nossa faca é muito superior ao aço deles.
Will examinou a faca com mais atenção, percebeu a cor azulada da lâmina e sentiu o seu equilíbrio perfeito. O cabo de couro e bronze dava a ela uma aparência simples e útil, mas era uma arma excelente e muito superior às es-padas grosseiras usadas pelos guerreiros do castelo Red-mont.
Halt mostrou a Will como prender a bainha dupla em seu cinto para que conseguisse pegar as facas com fa-cilidade.
— Agora tudo o que você precisa fazer é aprender a usar as facas. E você sabe o que isso significa, não sabe?
Will sacudiu a cabeça sorrindo.
— Muita prática — ele respondeu.

CAPÍTULO 11

Sir Rodney inclinou-se na cerca de madeira que rodeava a área de treinamento enquanto observava os novos cadetes da Escola de Guerra, que faziam exercícios com armas. Pensativo, ele esfregou o queixo, olhando com atenção os novos 20 recrutas, mas sempre voltando para um em es-pecial — o garoto alto de ombros largos da ala dos prote-gidos que tinha selecionado no Dia da Escolha. Ele pen-sou um instante, tentando se lembrar do nome do garoto.
Horace, era isso.
O exercício era comum. Cada garoto, usando uma malha de ferro, um capacete e carregando um escudo, fi-cava em frente a um poste de madeira acolchoado da al-tura de um homem. Sir Rodney achava que só fazia senti-do praticar o uso da espada quando se estava usando todo o equipamento pesado, como acontecia numa guerra. Ele achava melhor que os meninos se acostumassem às limi-tações da armadura e do peso do equipamento desde o começo.
Além do escudo, do capacete e da malha, cada ga-roto também tinha uma espada para exercícios fabricada
pelo armeiro. Essas espadas eram feitas de madeira e, fora o cabo de couro e a cruzeta, se pareciam pouco com uma espada real. Na verdade, eram bastões compridos feitos de nogueira forte. Mas o peso era muito parecido com o das lâminas de aço estreitas, e os cabos eram construídos para se aproximar do peso e do equilíbrio de uma espada de verdade.
No final, os recrutas iriam passar a exercícios com espadas de verdade, mas sem ponta e sem corte. Porém esse momento ainda demoraria alguns meses para chegar e, nessa etapa, os recrutas menos capazes já teriam sido eliminados. Era perfeitamente normal que pelo menos um terço dos alunos da Escola de Guerra abandonasse os duros treinamentos nos primeiros três meses. Às vezes, era o garoto que decidia. Outras, era o instrutor ou, em casos extremos, o próprio sir Rodney. A Escola de Guerra era difícil, e os seus padrões eram rígidos.
No pátio de treinamento, ouviam-se as pancadas fortes da madeira contra o forro dos postes, feito de cou-ro grosso e endurecido pelo sol. Na entrada do pátio, o mestre de exercícios, sir Karel, indicava os movimentos a serem realizados.
Cinco cadetes do 5° ano, orientados por sir Mor-ton, um instrutor assistente, andavam entre os novos aprendizes, atentos aos detalhes dos golpes básicos de es-pada, corrigindo um movimento errado aqui, mudando o ângulo de um golpe ali, garantindo que os garotos não abaixassem demais os escudos durante o exercício.
Era um trabalho monótono e repetitivo, realizado debaixo do sol quente da tarde, porém necessário. Aqueles eram os movimentos básicos que ajudariam os garotos a viver ou morrer em algum ponto do futuro, e era essencial que eles estivessem muito bem treinados e capazes de agir por instinto.
Foi esse pensamento que fez sir Rodney observar Horace naquele momento. Enquanto Karel ditava os mo-vimentos básicos, Rodney tinha percebido que Horace estava acrescentando golpes extras à sequência sem se atrasar ou perder o ritmo.
Karel tinha acabado de iniciar outra série de exercí-cios, e sir Rodney se inclinou atento, com os olhos fixos em Horace.
— Ataque! Golpe lateral! Cortada à esquerda! Aci-ma do ombro! — gritava o mestre de exercícios. — Cor-tada por cima!
Quando Karel mandou realizar a cortada por cima, Horace obedeceu, mas então, quase ao mesmo tempo, passou para uma cortada para o lado, deixando que o pri-meiro movimento o preparasse instantaneamente para o segundo. O golpe foi dado com tamanha velocidade e força que, num combate real, o resultado seria destruidor. O escudo do oponente, levantado para impedir a cortada, nunca poderia ter reagido com a rapidez necessária para proteger as costelas descobertas do movimento rápido que se seguiu.
Nos últimos minutos, Rodney se dera conta de que o aluno estava acrescentando esses golpes à rotina. Ele os tinha visto primeiro com o canto dos olhos ao perceber uma leve variação no padrão rígido do exercício, uma rá-pida agitação no movimento extra que surgiu e desapare-ceu quase depressa demais para ser visto.
— Descansar! — Karel gritou.
Rodney notou que, enquanto a maioria dos outros deixava cair as armas e ficava à vontade, Horace mantinha a posição de sentido, a ponta da espada ligeiramente acima da cintura e movia os dedos do pé durante a pausa como se não quisesse perder o ritmo.
Aparentemente, alguém mais tinha percebido os golpes adicionais de Horace. Sir Morton se inclinou para um dos cadetes mais velhos e falou com ele, fazendo ges-tos rápidos na direção de Horace. O aluno do 1° ano, ainda atento ao poste de treinamento que era seu inimigo, não notou a conversa. Ele olhou para cima confuso quando o cadete se aproximou e o chamou.
— Ei, você! No poste 14. O que pensa que está fa-zendo?
Surpresa e preocupação apareceram no rosto de Horace. Nenhum recruta do 1° ano gostava de receber a atenção dos mestres de exercícios ou dos seus assistentes. Todos sabiam muito bem qual a quantidade de alunos que deixava a escola depois de algum tempo.
— Senhor? — ele disse ansioso, sem entender a pergunta.
— Você não está seguindo o padrão. Faça o que sir Karel manda, está bem?
Rodney observou tudo com atenção e ficou con-vencido de que a surpresa de Horace era verdadeira. O garoto alto fez um pequeno movimento com os ombros. Ele agora estava em posição de sentido, com a espada apoiada no ombro direito e o escudo erguido em posição de desfile.
— Senhor? — ele chamou indeciso. O cadete mais velho estava ficando zangado. Não tinha percebido os movimentos extras de Horace e obviamente supôs que o garoto mais jovem estava simplesmente seguindo uma sequência ao acaso por conta própria. Ele se inclinou para a frente e o seu rosto ficou apenas a alguns centímetros do de Horace.
— Sir Karel indica a sequência que quer que vocês façam! E você obedece! — ele disse em voz bem alta para aquela distância. — Entendeu?
— Senhor, eu... obedeci — Horace respondeu com o rosto muito vermelho.
Ele sabia que não devia discutir com um instrutor, mas também sabia que tinha feito todos os golpes exigi-dos por Karel.
Rodney viu que o cadete mais velho agora estava em desvantagem. Ele não tinha visto o que Horace tinha feito e disfarçou a incerteza com raiva.
— Ah, obedeceu, hein? Bom, talvez você queira repetir a última sequência para mim. Que sequência sir Karel pediu?
— A sequência número 5, senhor. Ataque, golpe lateral, cortada à esquerda, acima do ombro, cortada por cima — Horace respondeu sem hesitação.
O cadete vacilou. Ele achava que Horace tinha simplesmente feito os exercícios sem atenção e golpeado o poste de qualquer jeito. Mas Horace tinha repetido a sequência com perfeição. Pelo menos era o que parecia. O garoto mais velho não tinha certeza absoluta de qual tinha sido a sequência, mas o aluno tinha respondido sem ne-nhuma hesitação. Ele percebeu que todos os outros alu-nos estavam assistindo à cena com muito interesse, o que era natural. Alunos sempre gostavam de ver alguém ser repreendido por um erro, pois desse modo os próprios erros não eram notados.
— O que está acontecendo, Paul? — sir Morton, assistente do mestre de exercícios, perguntou, parecendo aborrecido com a discussão.
Ele tinha mandado o cadete repreender o aluno pe-la falta de atenção. Essa repreensão já deveria ter sido da-da, e o assunto, terminado. Em vez disso, a aula estava sendo atrapalhada. O cadete Paul se aproximou.
— Senhor, o aluno disse que realizou a sequência — ele respondeu.
Horace quis protestar, mas pensou melhor e fechou a boca.
— Um momento.
Paul e sir Morton se viraram um pouco surpresos, pois não tinham percebido a aproximação de sir Rodney. Ao redor deles, os outros alunos também ficaram em po-sição de sentido. Sir Rodney era admirado por todos os membros da Escola de Guerra, especialmente pelos mais novos. Morton não chegou a ficar em posição de sentido, mas endireitou um pouco o corpo e ajeitou os ombros.
Horace mordeu o lábio de preocupação. Ele sentiu a possibilidade de ser dispensado da Escola de Guerra. Primeiro, os três cadetes do 2° ano tornaram-se seus ini-migos e vinham fazendo de sua vida um inferno. Agora, tinha chamado a atenção indesejada do cadete Paul e de sir Morton. E, para terminar, o próprio mestre de guerra estava ali presente. Para piorar as coisas, não tinha idéia de que erro havia cometido. Ele se lembrava claramente de realizar a sequência como tinha sido pedido.
— Você se lembra da sequência, cadete Horace? — o mestre de guerra perguntou.
O cadete assentiu com a cabeça enfático, mas logo percebeu que essa não era considerada uma resposta acei-tável para uma pergunta vinda de um oficial superior, en-tão disse:
— Sim, senhor. A sequência número 5, senhor.
Rodney percebeu que aquela era a segunda vez que ele tinha identificado a sequência. Estava inclinado a apostar que nenhum dos outros cadetes seria capaz de di-zer que sequência do manual de exercícios tinha acabado
de completar. E duvidava também que os cadetes mais velhos estivessem mais bem informados. Sir Morton ia dizer alguma coisa, mas Rodney levantou a mão para im-pedi-lo.
— Talvez você possa repeti-la para nós — ele dis-se, a voz séria não mostrando o interesse cada vez maior que sentia por aquele recruta. Rodney fez um gesto na di-reção do poste de treinamento.
— Tome posição. Diga os nomes dos exercícios e... comece!
Horace realizou a sequência sem errar, gritando os nomes a cada golpe.
— Ataque! Golpe lateral! Cortada à esquerda! Aci-ma do ombro! Cortada por cima!
A espada de exercício batia com movimentos fir-mes contra o couro que cobria o poste. O ritmo era per-feito. A execução dos golpes era perfeita, mas desta vez Rodney percebeu que não houve nenhum movimento adicional. O golpe lateral rápido como um raio não foi dado. Ele imaginou saber o motivo. Desta vez, Horace estava concentrado em acertar a sequência. Antes, ele ti-nha agido instintivamente.
Sir Karel, atraído pela intervenção de sir Rodney numa sessão de treinamento comum, passeou entre as fi-leiras de alunos parados junto dos postes de exercícios. Ele estava com as sobrancelhas erguidas numa pergunta muda para sir Rodney. Como era um cavaleiro antigo, ti-nha direito a esse tipo de comportamento informal. O
mestre de guerra levantou a mão novamente. Não queria que nada atrapalhasse a concentração de Horace naquele momento. Mas estava satisfeito por Karel estar ali para testemunhar o que tinha certeza de que iria acontecer.
— Outra vez — ele disse no mesmo tom de voz sério, e Horace reiniciou a sequência.
Quando terminou, a voz de Rodney soou como um chicote.
— Outra vez!
E novamente Horace executou a quinta sequência.
— Sequência 3! — Rodney disparou quando o ra-paz terminou.
— Ataque! Ataque! Passo para trás! Parada cruzada! Bloqueio de escudo! Golpe lateral! — Horace disse en-quanto realizava os movimentos.
Rodney notou que o garoto se movimentava com leveza sobre os dedos dos pés, enquanto a espada parecia uma língua que dançava de um lado para outro. Sem per-ceber, Horace estava anunciando a cadência de movi-mentos quase tão rápido quanto o mestre de exercícios tinha feito.
Karel olhou para Rodney e acenou com ar de satis-fação. Mas Rodney ainda não tinha terminado. Antes que Horace tivesse tempo para pensar, ele anunciou a quinta sequência de novo e o garoto reagiu.
— Ataque! Golpe lateral! Cortada à esquerda! Aci-ma do ombro! Cortada por cima!
— Cortada à esquerda! — Sir Rodney disparou instantaneamente e, em resposta, quase como se tivesse vontade própria, a espada de Horace se movimentou na-quele golpe extra e mortal.
Sir Rodney escutou os sons de surpresa de Morton e Karel. Eles perceberam a importância do que tinham visto. O cadete Paul demorou a entender o que tinha acontecido. Para ele, o aluno tinha respondido a uma or-dem extra do mestre de guerra. Em sua opinião, Horace tinha realizado o exercício com perfeição, sabia manejar a espada, mas isso era tudo o que tinha visto.
— Descansar! — Sir Rodney ordenou, e Horace apoiou a mão no punho da espada encostada no chão, os pés separados, o cabo da arma na frente da fivela do cinto na posição de descanso de desfile.
— Agora, Horace — o mestre de guerra disse de-vagar —, você se lembra de ter acrescentado aquela cor-tada lateral à esquerda à sequência na primeira vez?
Horace franziu a testa e então compreendeu. Ele não tinha certeza, mas agora que o mestre de guerra re-frescara sua memória, achou que isso podia ter aconteci-do.
— Ahn... sim, senhor. Acho que sim. Sinto muito, senhor. Eu não tinha a intenção. É que... simplesmente aconteceu.
Rodney olhou rapidamente para os seus mestres de exercício e viu que eles entendiam a importância do que tinha acontecido ali. Ele fez um gesto com a cabeça para
os homens, passando a mensagem silenciosa de que não queria que nada fosse feito a respeito disso... ainda.
— Bem, não aconteceu nada de errado, mas preste atenção no restante do período e só faça os exercícios pe-didos por sir Karel, está certo?
— Sim, senhor! — Horace respondeu em posição de sentido. — Desculpe, senhor! — ele disse para o mes-tre de exercícios, que respondeu com um aceno de mão.
— Preste mais atenção no futuro — Karel fez um gesto de cabeça para sir Rodney ao perceber que o mestre de guerra queria se afastar. — Obrigado, senhor. Pode-mos continuar?
— Prossiga, mestre — sir Rodney concordou e começou a se virar, mas, como se se lembrasse de algo, voltou e acrescentou como quem não quer nada: — Ah, por falar nisso, posso conversar com você no meu gabi-nete no fim da tarde, depois que as aulas terminarem?
— Claro, senhor — Karel respondeu no mesmo tom, sabendo que sir Rodney queria discutir aquele fenô-meno, mas sem querer que Horace percebesse seu inte-resse.
Sir Rodney voltou lentamente para a sede da Escola de Guerra. Atrás dele, escutou Karel dando ordens e de-pois o som repetitivo da madeira batendo no couro.

CAPÍTULO 12

Halt examinou o alvo no qual Will estivera atirando e as-sentiu com um gesto de cabeça.
— Nada mal — ele elogiou. — A sua pontaria está mesmo melhorando.
Will não conseguiu evitar um sorriso. Aquele era realmente um grande elogio, vindo de Halt. Este viu a ex-pressão do garoto e imediatamente acrescentou:
— Com mais prática, muito mais prática, você até pode alcançar a mediocridade.
Will não tinha muita certeza do que aquela palavra queria dizer, mas teve a impressão de que não era uma coisa boa. O sorriso desapareceu, e Halt abandonou o as-sunto com um aceno de mão.
— Chega de treino de arco-e-flecha por ora. Vamos — ele disse e saiu, caminhando numa trilha estreita pela floresta.
— Para onde estamos indo? — Will perguntou, quase correndo para acompanhar as passadas largas do arqueiro.
— Por que esse menino faz tantas perguntas? — Halt perguntou, olhando para as árvores acima dele.
É claro que elas não responderam.
Os dois andaram por uma hora antes de chegar a um pequeno grupo de casas enterradas no fundo da flo-resta.
Will estava louco para fazer mais perguntas, mas já tinha aprendido que Halt não ia respondê-las, então re-solveu ter paciência. Ele sabia que cedo ou tarde descobri-ria por que estavam ali.
Halt foi até a maior das cabanas em ruínas, parou e fez sinal para que Will o seguisse.
— Olá, Velho Bob! — ele chamou.
Will ouviu alguém se mexendo dentro da cabana e então um vulto enrugado e encurvado apareceu na porta. O homem era quase careca, e sua barba era comprida, manchada e de um branco sujo. Quando ele andou na di-reção dos dois, sorrindo e cumprimentando Halt com um aceno de cabeça, Will prendeu a respiração. O Velho Bob cheirava a estábulo, e dos mais sujos, por sinal.
— Bom-dia, arqueiro! — o velho cumprimentou. — Quem você trouxe aí?
Ele olhou para Will com interesse. Seus olhos eram brilhantes e atentos, apesar da aparência suja e descuidada.
— Este é Will, meu novo aprendiz — Halt disse. — Will, este é o Velho Bob.
— Bom-dia, senhor — Will cumprimentou educa-do, e o velho riu.
— Ele me chamou de senhor! Viu só, arqueiro, ele me chamou de senhor! Esse vai ser um excelente arqueiro!
Will sorriu para ele. Por mais sujo que fosse, havia algo de cativante nele, talvez fosse o fato de não parecer se deixar intimidar por Halt, Will não conseguia se lem-brar de ter visto ninguém falar tão à vontade com o ar-queiro. Halt grunhiu impaciente:
— Eles estão prontos? — perguntou.
O velho riu outra vez e acenou várias vezes com a cabeça.
— Estão mais que prontos! — ele respondeu. — Venha até aqui e veja.
Ele os levou para o fundo da cabana, onde havia um pequeno cercado com o portão aberto. Na outra ex-tremidade, havia um abrigo coberto por um telhado sus-tentado por quatro postes. Não havia paredes. O Velho Bob soltou um assobio agudo que fez Will dar um pulo.
— Eles estão ali, está vendo? — falou, apontando para o abrigo. Will viu dois cavalos pequenos trotando pelo terreno para cumprimentar o velho. Quando se apro-ximaram, o rapaz percebeu que um deles era um pônei, mas os dois eram animais pequenos e desgrenhados, em nada parecidos com os cavalos de batalha fortes e lustro-
sos em que o barão e seus guerreiros cavalgavam para a guerra.
O maior dos dois trotou imediatamente para perto de Halt, que acariciou seu pescoço e lhe deu uma maçã tirada de um cesto perto da cerca. O cavalo a mastigou agradecido. Halt se inclinou para a frente e murmurou al-gumas palavras em seu ouvido. O cavalo virou a cabeça e relinchou, como se os dois estivessem achando graça de alguma piada particular.
O pônei esperou até que o Velho Bob também lhe tivesse dado uma maçã para mastigar e então virou o olhar inteligente para Will.
— Esse se chama Puxão — o velho homem con-tou. — Parece que é do seu tamanho, não é?
Ele passou a rédea de corda para Will, que a segu-rou e observou os olhos do cavalo. Ele era um animal pequeno e desgrenhado. Suas pernas eram curtas, mas fortes. O corpo tinha a forma de um barril, a crina e a cauda estavam ásperas e precisavam ser escovadas. Para falar a verdade, em se tratando de cavalos, Will achou que aquele não era uma figura muito impressionante.
Sempre tinha sonhado com um cavalo que algum dia o levasse a uma batalha. Nesses sonhos, o cavalo era alto e majestoso, forte e negro, penteado e escovado até brilhar como uma armadura.
O cavalo quase pareceu sentir o que ele estava pensando e encostou a cabeça delicadamente no ombro do garoto.
“Talvez eu não seja muito grande”, os olhos dele pareciam dizer, “mas posso surpreender você.”
— Bom — Halt disse. — O que você achou dele? — perguntou, acariciando o focinho macio do animal.
Era óbvio que o arqueiro e aqueles bichos eram velhos amigos. Will hesitou, pois não queria ofender nin-guém.
— Ele é... meio... pequeno — disse finalmente.
— Você também é — Halt ressaltou.
Will não conseguiu encontrar uma resposta para isso. O Velho Bob se torcia de tanto rir.
— Ele não é um cavalo de batalha, não é, garoto? — o velho perguntou.
— Bem... não, não é — Will respondeu sem jeito.
Ele gostava de Bob e sentiu que qualquer crítica ao pônei poderia ser levada para o lado pessoal. Mas o velho só riu de novo:
— Mas ele ganha de qualquer um daqueles cavalos de batalha sofisticados! — disse com orgulho. — Ele é muito forte, este garoto aqui! Consegue andar o dia intei-ro, muito tempo depois que os cavalos elegantes se deita-ram e morreram.
Indeciso, Will olhou para o pequeno animal des-grenhado.
— Tenho certeza que sim — ele disse com educa-ção.
— Por que você não experimenta? — Halt per-guntou, recostando-se na cerca. — Você é um corredor rápido. Solte ele e veja se consegue pegar outra vez.
Will sentiu o desafio na voz do arqueiro e soltou a rédea. O cavalo, como se percebesse que aquilo era algum tipo de teste, se afastou um pouco para o centro do pe-queno cercado. Will passou por baixo da cerca, andou de-vagar até o pônei e estendeu a mão num gesto convidati-vo.
— Venha, garoto — ele disse. — Fique quieto aí.
Will tentou pegar a rédea e, de repente, o pequeno cavalo virou, afastou-se para um lado e depois para o ou-tro, deu alguns passos ao redor de Will e caminhou para trás, para fora de seu alcance.
Will tentou novamente.
Mais uma vez, o cavalo escapou com facilidade. Will estava começando a se sentir um idiota. Ele avançou para o cavalo, e o animal recuou. Em seguida, exatamente quando Will pensou que o pegaria, ele dançou com agili-dade para o lado e fugiu outra vez.
Will perdeu o humor e correu atrás dele. O cavalo, gostando da brincadeira, relinchou e correu para fora de seu alcance.
E assim eles continuaram. Will se aproximava, o cavalo se abaixava, desviava e escapava. Até mesmo no espaço reduzido do pequeno cercado, ele não conseguiu apanhá-lo.
Will parou consciente de que Halt o observava com atenção. Pensou por alguns instantes, pois achou que ti-nha de haver uma saída. Nunca conseguiria pegar um ca-valo ágil e rápido como aquele. Tinha que haver um outro jeito...
Seu olhar caiu sobre o cesto de maçãs do lado de fora da cerca. Rapidamente, ele passou por baixo da grade e pegou uma maçã. Então, voltou para o cercado e ficou parado feito uma estátua, estendendo a fruta.
— Venha, garoto — ele chamou.
Puxão levantou as orelhas. Gostava de maçãs e achou que também gostava do garoto — ele sabia jogar esse jogo. Sacudindo a cabeça de um jeito aprovador, tro-tou para a frente e pegou a maçã com delicadeza. Will apanhou a rédea, e o pônei mastigou a maçã. Se fosse possível dizer que um cavalo parece feliz, aquele parecia.
Will olhou para cima e viu Halt fazer um aceno de aprovação:
— Bem pensado!
O Velho Bob deu um cutucão nas costelas do ho-mem vestido de cinza.
— Garoto esperto, esse aí! Esperto e educado! Vai formar uma boa equipe com o Puxão, você não acha?
Will deu tapinhas no pescoço desgrenhado do ca-valo e olhou para o velho.
— Por que o nome dele é Puxão? — ele quis saber.
No mesmo momento, o braço de Will foi quase ar-rancado quando o pônei jogou a cabeça para trás de re-
pente. Will cambaleou e recuperou o equilíbrio. A garga-lhada do Velho Bob se fez ouvir na clareira.
— Vamos ver se você adivinha! — ele disse delici-ado.
O riso dele era contagioso, e Will não conseguiu não rir também. Halt olhou para o sol, que desaparecia depressa atrás das árvores que cercavam a clareira do Ve-lho Bob e as campinas além.
— Leve Puxão para o abrigo, Bob vai lhe mostrar como tratar do pêlo e como alimentar ele — ele mandou. — Vamos ficar com você esta noite, Bob, se você con-cordar — acrescentou, dirigindo-se ao velho homem.
— Vou gostar da companhia, arqueiro — o velho respondeu com prazer. — Às vezes, passo tanto tempo com os cavalos que começo a pensar que também sou um deles.
Sem perceber, ele mergulhou uma das mãos no cesto de maças e escolheu uma, dando-lhe uma mordida como Puxão tinha feito alguns minutos antes. Halt o ob-servou com surpresa.
— Acho que chegamos na hora certa — ele mur-murou secamente. — Então, amanhã vamos ver se Will é tão bom para montar o Puxão quanto para pegar ele — continuou, imaginando que seu aprendiz não iria dormir muito naquela noite depois de ouvir suas palavras.
Ele tinha razão. A pequena cabana do Velho Bob só tinha dois aposentos. Portanto, depois do jantar, Halt se estendeu no chão perto da lareira e Will se ajeitou na
palha limpa e quente do celeiro, ouvindo os suaves sons da respiração dos dois cavalos. A Lua nasceu e desapare-ceu, e o garoto permaneceu acordado, questionando-se e preocupando-se com o que o dia seguinte iria trazer. Será que ele conseguiria montar o Puxão? Nunca tinha caval-gado. Será que cairia assim que tentasse?
Será que ficaria machucado? Ou, pior ainda, ficaria numa situação constrangedora? Ele gostava do Velho Bob e não queria parecer idiota na sua frente. Nem na frente de Halt, ele se deu conta um tanto surpreso. Quando fi-nalmente adormeceu, ainda se perguntava em que mo-mento a opinião de Halt tinha se tornado tão importante para ele.

CAPÍTULO 13

— Então, você viu o que aconteceu. O que achou? — sir Rodney perguntou.
Karel estendeu a mão e tornou a encher sua caneca com cerveja da jarra que estava na mesa entre eles. Os aposentos de Rodney eram bem simples, quando se pen-sava que ele era o chefe da Escola de Guerra. Mestres de guerra em outros feudos tiravam vantagem da posição para se cercar de comodidades e luxo, mas esse não era o estilo de Rodney. O seu quarto era mobiliado com simpli-cidade — uma mesa de pinho no lugar da escrivaninha, cercada por seis cadeiras também de pinho, de encosto reto.
Num canto, é claro, havia uma lareira. Rodney pre-feria viver com simplicidade, mas isso não queria dizer que gostasse de desconforto, e os invernos no castelo Redmont eram frios. Eles estavam no final do verão, e as grossas paredes de pedra dos prédios do castelo serviam para manter o frescor do interior. Quando o frio chegava, essas mesmas paredes grossas retinham o calor do fogo. Em uma delas, uma grande janela com sacada se abria pa-
ra o campo de treinamento da Escola de Guerra. De frente para a janela, na parede oposta, havia um vão de porta coberto por uma cortina grossa que levava para o quarto de dormir de Rodney, onde havia uma simples ca-ma de soldado e móveis de madeira. Quando a esposa, Antoinette, ainda estava viva, o local era mais decorado, mas ela tinha morrido alguns anos antes, e os quartos agora tinham um toque inconfundivelmente masculino, sem qualquer objeto que não fosse útil e sem nenhum en-feite.
— Sim, eu vi — Karel concordou. — Não sei se acreditei, mas vi.
— Você só o viu uma vez — Rodney disse. — Ele fez isso várias vezes durante toda a sessão, e estou con-vencido de que o fez inconscientemente.
— Tão depressa quanto aquele que eu vi? — Karel perguntou, e Rodney assentiu energicamente.
— Quem sabe, até mais depressa. Ele adicionou um golpe extra à rotina, mas acompanhou o ritmo do exercício — ele hesitou e finalmente disse o que os dois estavam pensando: — O garoto tem um dom natural.
Karel inclinou a cabeça pensativo. Com base no que tinha visto, não estava preparado para contestar o fa-to. E sabia que o mestre de Guerra tinha observado o ga-roto por algum tempo durante o treino. Mas garotos com vocação eram poucos e demoravam a aparecer. Eles eram aquelas pessoas especiais para quem a habilidade com a
espada funcionava numa dimensão totalmente diferente. Era mais um instinto do que uma habilidade.
Esses eram os que se tornavam campeões. Os mes-tres da espada. Guerreiros experientes como sir Rodney e sir Karel eram espadachins hábeis, mas aqueles com vo-cação levavam a técnica para outro plano. Era como se para eles a espada nas mãos se tornasse uma real extensão não só de seus corpos, mas também de suas personalida-des. A espada parecia atuar em comunhão e em harmonia instantânea com a mente do espadachim, agindo até mais rápido do que o pensamento consciente. Os que tinham o dom possuíam habilidades únicas no que se referia à velo-cidade, ao equilíbrio e ao ritmo.
Assim sendo, representavam uma grande responsa-bilidade para os que estavam envolvidos com seu treina-mento, pois essas habilidades e técnicas inatas tinham que ser cuidadosamente alimentadas e desenvolvidas em pro-gramas de treinamento para que o guerreiro, já muito efi-ciente naturalmente, desenvolvesse o seu verdadeiro po-tencial de genialidade.
— Tem certeza? — Karel disse por fim, e Rodney assentiu outra vez, olhando pela janela.
Em pensamento, ele via o treino do garoto e seus movimentos adicionais rápidos como um raio.
— Tenho — ele disse simplesmente. — Vamos ter que dizer a Wallace que ele vai ter outro aluno no próximo semestre.
Wallace era o mestre espadachim da Escola de Guerra Redmont e tinha a responsabilidade de dar o po-limento final nas habilidades básicas que Karel e os outros ensinavam. No caso de um aluno brilhante — como Ho-race evidentemente era — ele daria aulas particulares de técnicas avançadas. Karel refletiu sobre o prazo que Ro-dney tinha sugerido.
— Só depois disso? — ele perguntou. Faltavam ainda quase três meses para o semestre seguinte. — Por que não imediatamente? Pelo que vi, ele já domina as téc-nicas básicas.
Mas Rodney sacudiu a cabeça.
— Ainda não avaliamos a personalidade — retru-cou. — Ele parece um bom garoto, mas nunca se sabe. Se se mostrar desajustado, não quero lhe dar o tipo de ins-trução avançada que Wallace pode oferecer.
Quando pensou a respeito, Karel concordou com o mestre de Guerra. Afinal, caso Horace tivesse de ser dis-pensado da Escola de Guerra por causa de alguma outra falha, isso seria embaraçoso e até perigoso se ele já esti-vesse no caminho de ser um espadachim altamente quali-ficado. Muitas vezes, alunos dispensados reagiam com ressentimento.
— E tem outra coisa — Rodney acrescentou. — Vamos manter esta conversa entre nós e dizer a mesma coisa a Morton. Não quero que o garoto escute nada so-bre isso ainda. Ele pode ficar convencido, e isso pode ser perigoso para ele.
— Tem toda a razão — Karel concordou. Ele ter-minou a cerveja em dois goles rápidos, colocou a caneca na mesa e se levantou. — Bem, acho melhor ir. Tenho uns relatórios para acabar.
— E quem não tem? — perguntou o mestre de guerra com cansaço, e os dois velhos amigos trocaram sorrisos pesarosos. — Nunca imaginei que dirigir a Escola de Guerra envolvesse tanta papelada. — Rodney comen-tou, fazendo Karel rir.
— Às vezes, acho que deveríamos esquecer o trei-namento com armas e simplesmente jogar toda a papelada sobre o inimigo e enterrar ele nela.
Ele fez uma saudação informal, apenas tocando a testa com o dedo indicador, como mostra de respeito. Então se virou e se dirigiu para a porta. Parou quando Rodney acrescentou um último ponto à discussão.
— Fique de olho no garoto. Mas não deixe que ele perceba.
— Claro — Karel respondeu. — Não queremos que comece a pensar que tem alguma coisa de especial.
Naquele momento, não havia a menor possibilida-de de Horace imaginar que tinha algo de especial — pelo menos não num sentido positivo. O que ele realmente sentia era que tinha o dom de atrair problemas.
As pessoas estavam falando sobre a estranha cena que tinha acontecido na área de exercícios. Seus colegas, sem entender o que tinha ocorrido, haviam presumido que, de alguma forma, Horace aborrecera o mestre de guerra e agora esperava pelo inevitável castigo. Eles sabi-am que a regra durante o 1° semestre era que, quando um membro da classe cometesse um erro, toda a classe paga-ria por ele. Como resultado, o clima no dormitório estava, no mínimo, tenso. Horace tinha saído do quarto com in-tenção de ir até o rio para escapar à condenação e a críti-cas, que podia sentir no rosto dos outros. Infelizmente, quando fez isso, foi direto para os braços de Alda, Bryn e Jerome.
Os três garotos mais velhos tinham ouvido uma versão distorcida da cena na quadra de treinamento. Eles imaginaram que Horace tinha sido criticado por seus exercícios com a espada e decidiram fazê-lo sofrer por is-so.
Entretanto, sabiam que suas atitudes não seriam aprovadas pelos funcionários da Escola de Guerra. Hora-ce, como recém-chegado, não tinha como saber que esse tipo de ataque sistemático era totalmente condenado por sir Rodney e pelos outros instrutores. Simplesmente pres-supôs que as coisas tinham que ser assim e, sem ter noção do que acontecia, permitiu-se ser atacado e insultado.
Foi por esse motivo que os três cadetes do 2° ano fizeram Horace marchar até a margem do rio, para onde ele ia de qualquer jeito, para longe da vista dos instrutores.
Ali, fizeram que ele entrasse no rio até que a água batesse na altura da sua coxa e ficasse em posição de sentido.
— O bebê não sabe usar a espada — disse Alda.
— O bebê deixou o mestre de guerra zangado — Brian acrescentou, usando o mesmo refrão. — O lugar do bebê não é na Escola de Guerra, bebês não devem brincar com espadas.
— O bebê devia jogar pedras, em vez disso — Je-rome concluiu com sarcasmo. — Pegue uma pedra, bebê.
Horace hesitou e então olhou à sua volta. A mar-gem do rio estava cheia de pedras, e ele se inclinou para pegar uma. Quando fez isso, a manga e a parte superior de sua jaqueta ficaram encharcadas.
— Uma pedra pequena, não, bebê — Alda disse sorrindo maldosamente para ele. — Você é um bebezão, então precisa de uma pedra grande.
— Uma pedra muito grande — Bryn acrescentou, mostrando com as mãos que ele queria que Horace apa-nhasse uma pedra enorme.
Horace olhou ao redor e viu várias pedras maiores na água cristalina. Ele se abaixou e pegou uma delas. Ao fazer isso, cometeu um erro. Dentro da água, foi fácil le-vantar a pedra que escolheu, mas, quando a trouxe acima da superfície, mal suportou o peso.
— Vamos ver, bebê — Jerome disse. — Levante-a.
Horace apoiou os pés no chão com firmeza. A corrente rápida do rio não o deixava manter o equilíbrio e segurar a pedra pesada ao mesmo tempo, então ele a le-
vantou até a altura do peito para que seus atormentadores pudessem vê-la.
— Mais alto, bebê — Alda ordenou. — Acima da cabeça.
Sofrendo, Horace obedeceu. A pedra parecia pesar mais a cada segundo que passava, mas ele a levantou aci-ma da cabeça, e os três garotos ficaram satisfeitos.
— Muito bom, bebê — Jerome elogiou, e Horace, com um suspiro de alívio, começou a abaixar a pedra.
— O que está fazendo? — Jerome perguntou zan-gado. — Eu disse que está bom. Isso quer dizer que é aí que a pedra deve ficar.
Horace se esforçou e levantou a pedra acima da cabeça outra vez, estendendo os braços. Alda, Bryn e Je-rome fizeram um gesto de aprovação.
— Agora você pode ficar aí e contar até 500 — Alda disse. — Depois pode voltar ao dormitório.
— Comece a contar — Bryn mandou, rindo da idéia.
— Um, dois, três... — Horace começou, mas todos gritaram com ele quase imediatamente.
— Não tão depressa, bebê! Devagar e sempre. Comece de novo.
— Um... dois... três... — Horace contou e eles aprovaram.
— Assim está melhor. Agora, conte devagar até 500 e depois pode ir — Alda disse.
— Não tente nos enganar, porque vamos descobrir — Jerome ameaçou. — E então você vai ter que voltar aqui e contar até mil.
Rindo, os três estudantes voltaram para os seus dormitórios. Horace ficou no meio do rio com os braços tremendo por causa do peso da pedra e com lágrimas de frustração e humilhação enchendo seus olhos. Num de-terminado momento, ele perdeu o equilíbrio e caiu na água. Depois disso, suas roupas pesadas e encharcadas di-ficultaram ainda mais a tarefa de segurar a pedra acima da cabeça, mas ele não desistiu. Não tinha certeza de que os garotos não estavam escondidos em algum lugar, vigian-do-o e, se estivessem, eles o fariam pagar por desobedecer a suas ordens.

“Se é assim que as coisas têm que acontecer, então que sejam,” ele pensou. Mas prometeu a si mesmo que, na primeira oportunidade que tivesse, faria alguém pagar pela humilhação que estava passando.
Muito mais tarde, com as roupas ensopadas, os braços doloridos e um profundo ressentimento queiman-do seu coração, voltou ao dormitório às escondidas. Ele chegou tarde demais para o jantar, mas não se importou. Estava sofrendo demais para comer.


CAPÍTULO 14


— Leve-o para dar uma volta — Halt sugeriu.
Will olhou para o pônei desgrenhado que o obser-vava com um olhar inteligente.
— Vamos, garoto — ele chamou, puxando o ca-bresto.
No mesmo instante, Puxão firmou as pernas dian-teiras e recusou-se a se mexer. Will puxou a corda com mais força e tentou de tudo para fazer o pequeno pônei teimoso se mover.
O Velho Bob se torcia de tanto rir.
— Ele é mais forte do que você!
Envergonhado, Will sentiu as bochechas ficarem quentes. Ele puxou com mais força. Puxão agitou as ore-lhas e resistiu. Era como tentar puxar uma casa.
— Não olhe para ele — Halt ensinou com suavi-dade. — Apenas pegue a corda e se afaste. Ele vai acom-panhar você.
Will tentou desse jeito. Virou as costas para Puxão, segurou a corda com firmeza nas mãos e começou a an-dar. O pônei trotou docilmente atrás dele. Will olhou para
Halt e sorriu. O vigilante fez um gesto de cabeça na dire-ção do portão na outra extremidade do cercado. Will olhou para lá e viu uma pequena sela colocada sobre a cerca.
— Ponha os arreios nele — o vigilante mandou.
Puxão trotou para a cerca com facilidade. Will prendeu as rédeas na cerca, colocou a sela nas costas do pônei e se abaixou para apertar as tiras da barrigueira.
— Puxe com bastante força — o Velho Bob acon-selhou.
Finalmente, a sela estava firme no lugar, e Will olhou ansiosamente para Halt.
— Posso montar nele agora?
O vigilante acariciou a barba irregular com um ar pensativo antes de responder.
— Se você acha que é uma boa idéia, vá em frente — ele disse finalmente.
Will hesitou por um momento. A frase despertou uma lembrança vaga dentro dele, mas a ansiedade superou a cautela. Ele colocou um pé no estribo e jogou o corpo com agilidade nas costas do animal. Puxão não se mexeu.
— Vamos! — Will ordenou, batendo os calcanha-res na lateral do pônei.
Por um momento, nada aconteceu. Então Will sen-tiu um leve movimento estremecer o corpo do pônei.
De repente, Puxão arqueou as costas pequenas e musculosas e deu um salto no ar, fazendo que as quatro patas deixassem o chão ao mesmo tempo. Ele se virou vi-
olentamente para um lado, pousou nas patas dianteiras e chutou as traseiras na direção do céu. Will foi parar em cima das orelhas do pônei, deu uma cambalhota no ar e caiu de costas na terra. Ele se levantou, esfregando as costas.
Puxão ficou parado perto dele de orelhas empina-das, observando-o com atenção.
“Por que você foi fazer uma coisa boba como es-sa?”, ele parecia perguntar.
O Velho Bob se recostou na cerca, sacudindo-se de riso. Will olhou para Halt.
— O que eu fiz de errado?
Halt passou por baixo da cerca e foi até onde Pu-xão estava parado olhando para os dois, esperando para ver o que ia acontecer. Ele devolveu as rédeas para Will e pousou uma das mãos em seu ombro.
— Nada, se esse fosse um cavalo comum — ele respondeu. — Mas Puxão foi treinado especialmente para os arqueiros.
— Qual é a diferença? — Will interrompeu zanga-do, e Halt levantou a mão pedindo silencio.
— A diferença é que se deve pedir permissão a to-dos os cavalos dos arqueiros antes de montar nele pela primeira vez — Halt explicou. Eles são treinados desse jeito para que nunca possam ser roubados.
— Nunca ouvi falar de uma coisa dessas — Will disse, coçando a cabeça.
— Poucas pessoas ouviram — ele disse, sorrindo ao se aproximar. — É por isso que os cavalos dos arquei-ros nunca são roubados.
— Bom — disse Will — o que se deve dizer ao cavalo de um arqueiro antes de montar nele?
Halt deu de ombros.
— Isso varia de um cavalo para outro. Cada um reage a um pedido diferente — ele fez um gesto na dire-ção do cavalo maior. — O meu, por exemplo, reage às palavras permettez-moi.
— Permettez-moi? — Will repetiu. — Que palavras são essas?
— Isso é galês e quer dizer: “Você me dá permis-são?” É que os pais dele vieram da Gália, entende? — Halt explicou e então se virou para o Velho Bob. — Quais são as palavras para o Puxão, Bob?
Bob fechou os olhos, fingindo que não conseguia lembrar, e então seu rosto se iluminou.
— Ah, sim, eu lembro! Para esse aqui a gente tem que perguntar: “Tudo bem?”
— Tudo bem? — Will repetiu, e Bob sacudiu a ca-beça.
— Não é para mim que deve dizer isso, jovem! Fale isso no ouvido do cavalo!
Sentindo-se um pouco idiota e sem ter certeza de que os outros não estavam se divertindo às suas custas, Will se aproximou e disse suavemente no ouvido de Pu-xão:
— Tudo bem?
Puxão relinchou levemente. Will olhou desconfiado para os dois homens, e Bob acenou, encorajando-o.
— Vamos! Suba agora! O jovem Puxão não vai mais lhe fazer mal!
Com muito cuidado, Will subiu no lombo desgre-nhado do pônei outra vez. Suas costas ainda doíam da tentativa anterior. Ele ficou ali por um momento e nada aconteceu. Então, bateu nas costelas de Puxão com os calcanhares delicadamente.
— Vamos lá, garoto — disse baixinho.
As orelhas de Puxão se levantaram e ele deu um passo à frente devagar.
Ainda com cuidado, Will deixou que ele andasse ao redor do cercado uma ou duas vezes e então deu mais uma batidinha com os calcanhares. Puxão começou a tro-tar levemente. Will se movia com facilidade ao ritmo do trote do cavalo, e Halt observava tudo com olhar de aprovação. O garoto era um cavaleiro nato.
O arqueiro soltou a corda que fechava o cercado e abriu o portão.
— Leve ele para fora, Will — mandou —, e veja o que ele realmente sabe fazer!
Obediente, Will dirigiu o pônei na direção do por-tão e, quando passaram por ele rumo ao campo aberto, bateu mais uma vez nas costelas do animal com os calca-nhares. Ele sentiu o pequeno corpo musculoso do animal
se encolher um pouco, e então Puxão disparou num galo-pe rápido.
O vento zunia nos ouvidos de Will quando ele se inclinou para a frente sobre o pescoço do pônei, estimu-lando-o a correr ainda mais. Como resposta, as orelhas de Puxão se empinaram e ele andou ainda mais depressa do que antes.
Ia rápido como o vento. Suas pernas curtas se mis-turavam à paisagem enquanto ele levava o garoto a toda velocidade pela beira das árvores. Com delicadeza, sem ter certeza de como o pônei iria reagir, Will fez um pouco de pressão na rédea esquerda.
No mesmo instante, Puxão virou para a esquerda, afastando-se das árvores em diagonal. Will continuou exercendo uma leve pressão na rédea até que Puxão foi outra vez levado na direção do cercado. O garoto abafou um grito de surpresa quando viu a distancia que tinham percorrido. Halt e Velho Bob eram figuras minúsculas ao longe, mas cresciam rapidamente enquanto Puxão voava sobre a grama áspera para perto deles.
Um tronco caído apareceu no meio do caminho e, antes que Will pudesse fazer qualquer coisa para contor-ná-lo, Puxão se preparou, firmou as patas e saltou sobre o obstáculo. Will soltou um grito de entusiasmo, e o pônei relinchou levemente em resposta.
Eles já estavam quase de volta ao cercado quando Will puxou delicadamente as duas rédeas. No mesmo ins-tante, Puxão diminuiu o passo para meio galope, depois
para um trote e finalmente passou a andar, enquanto Will continuava a segurar as rédeas. Ele fez que o pônei paras-se ao lado de Halt. Puxão agitou a cabeça desgrenhada e relinchou outra vez. Will se inclinou e acariciou o pescoço do animal.
— Ele é fantástico! — disse sem fôlego. — É tão rápido quanto o vento!
— Talvez não tão rápido, mas certamente sabe correr — Halt disse sério. — Você fez um bom trabalho com ele, Bob — elogiou, virando-se para o velho.
O Velho Bob curvou a cabeça num sinal de agrade-cimento e se inclinou para também afagar o pônei des-grenhado. Ele tinha passado a vida criando, treinando e preparando cavalos para o Corpo de Arqueiros, e esse es-tava entre os melhores que já tinha visto.
— Ele consegue manter esse ritmo o dia todo — garantiu orgulhoso. — Põe qualquer cavalo de batalha no chinelo. O rapaz até que cavalga bem, não é, arqueiro?
— Não foi tão mal — Halt concordou, coçando a cabeça e escandalizando Bob.
— Não foi tão mal? Você é um homem muito du-ro, arqueiro! O garoto parecia leve como uma pena na-quele salto! — o velho olhou para Will, sentado de lado no pônei, e fez um gesto de apreciação. — E também sa-be usar as rédeas, ao contrário de muitos. Ele sabe lidar com o animal.
Will sorriu ao ouvir o elogio do velho treinador de cavalos. Arriscou uma olhada para Halt, mas o arqueiro estava sério como sempre.
“Ele nunca sorri”, Will pensou. Começou a des-montar, mas parou de repente.
— Tem alguma coisa que eu devo dizer a ele antes de descer?
— Não, garoto — Bob garantiu rindo. — Basta a primeira vez, e Puxão vai lembrar, contanto que seja você a montar nele.
Aliviado, Will desmontou e ficou ao lado do pônei, que o empurrava com a cabeça carinhosamente. Will olhou para a tina de maçãs.
— Posso dar outra para ele?
— Só mais uma — Halt respondeu. — Mas não faça disso um hábito. Ele vai ficar gordo demais para cor-rer se você lhe der comida o tempo todo.
Puxão resfolegou alto. Aparentemente, ele e Halt discordavam quanto à quantidade de maçãs que um pônei devia ganhar todos os dias.
Will passou o resto do dia recebendo dicas do Ve-lho Bob sobre como montar e aprendendo a cuidar da se-la e a consertar os arreios de Puxão. Também ficou sa-bendo de todos os detalhes de como cuidar do pequeno cavalo.
Ele escovou e tratou o pêlo desgrenhado até dei-xá-lo brilhando, e Puxão pareceu gostar dos cuidados. Fi-nalmente, cansado, com os braços doloridos do esforço,
ele se deixou cair num monte de feno. Este, é claro, tinha que ser o exato momento em que Halt entrou no estábulo.
— Venha — ele disse. — Não temos tempo para ficar por aí à toa. É melhor irmos andando se quisermos chegar em casa antes de escurecer.
E, ao dizer isso, ele jogou uma sela nas costas de seu cavalo. Will não se preocupou em reclamar e dizer que não tinha ficado “à toa”, como o arqueiro tinha dito. Para começar, sabia que não ia adiantar. E, em segundo lugar, estava animado com a idéia de voltar a cavalo para a pe-quena cabana de Halt na beira da floresta. Parecia que os dois cavalos passariam a ser parte permanente do local. Will tinha chegado à conclusão de que o animal de Halt já vivia lá e que o arqueiro só estava esperando que o garoto mostrasse habilidade para cavalgar para então lhe entregar Puxão e poder levar também seu cavalo de volta para casa.
Os cavalos relinchavam um para o outro de tempos em tempos enquanto trotavam de volta na floresta escura e verde. Era como se estivessem participando de uma conversa só deles. Will estava explodindo de curiosidade e tinha mil perguntas a fazer, mas ainda não se sentia à vontade para tagarelar demais na presença do arqueiro.
Finalmente, não conseguiu mais se conter.
— Halt? — ele começou com cautela.
O arqueiro grunhiu. Will entendeu isso como um sinal de que podia continuar a falar.
— Qual é o nome do seu cavalo?
Halt olhou para ele. O seu animal era um pouco maior do que Puxão, mas não chegava perto dos gigan-tescos cavalos de batalha que havia no estábulo do barão.
— Acho que é Abelard — ele contou.
— Abelard? — Will repetiu. — Que raio de nome é esse?
— É gálico — o arqueiro explicou, obviamente pondo fim na conversa.
Eles cavalgaram alguns quilômetros em silêncio. O sol já estava descendo sobre as árvores, e suas sombras estavam compridas e distorcidas no chão. Will observou a sombra de Puxão. O pônei parecia ter pernas extrema-mente compridas e um corpo ridiculamente curto. Ele queria chamar a atenção de Halt para o fato, mas imagi-nou que um comentário bobo como aquele não iria im-pressionar o arqueiro. Em vez disso, reuniu coragem para fazer outra pergunta que tinha ocupado seus pensamentos durante alguns dias.
— Halt? — ele disse outra vez.
O arqueiro soltou um leve suspiro.
— O que é agora?
Seu tom definitivamente não encorajava o início de uma conversa, mas Will insistiu.
— Você lembra que me contou que um arqueiro foi responsável pela derrota de Morgarath?
— Hum — Halt grunhiu.
— Bom, eu estava só pensando... Qual era o nome do arqueiro? — o garoto quis saber.
— Nomes não são importantes — Halt disse. — E eu não lembro.
— Foi você? — Will continuou, certo de que o ar-queiro sabia a resposta.
Halt jogou o seu olhar tranquilo e sério sobre ele.
— Já disse, nomes não são importantes.
Houve um silêncio entre eles por alguns segundos e então o arqueiro disse:
— Você sabe o que é importante? Will sacudiu a cabeça.
— O jantar é importante! E nós vamos nos atrasar para o jantar se não corrermos.
Ele bateu os calcanhares na barriga de Abelard e o cavalo disparou para a frente como uma flecha, deixando Will e Puxão bem para trás em questão de segundos.
Will bateu nos lados do pônei com os calcanhares e o pequeno animal saiu correndo em perseguição a seu amigo maior.
— Vamos, Puxão! — Will estimulou. — Vamos mostrar a eles como corre o verdadeiro cavalo de um ar-queiro!







CAPÍTULO 15

Will conduziu Puxão lentamente pela lotada feira que ti-nha sido montada fora dos muros do castelo. Todos os habitantes da vila e do castelo pareciam estar lá, e ele tinha que cavalgar com cuidado para que Puxão não pisasse no pé das pessoas.
Era o Dia da Colheita, ocasião em que toda a safra era reunida e armazenada para os meses de inverno que viriam. Depois de um mês difícil de colheita, tradicional-mente o barão dava esse feriado ao povo. Todos os anos, nessa época, a feira itinerante vinha para o castelo e ar-mava barracas e tendas. Havia engolidores de fogo e ma-labaristas, cantores e contadores de histórias. Havia bar-racas em que se podia tentar ganhar prêmios jogando bo-las macias de couro em pirâmides feitas de pedaços de madeira ou jogando argolas em cubos. Às vezes, Will ti-nha a impressão que os cubos eram um pouquinho maio-res do que as argolas e, para falar a verdade, ele nunca ti-nha visto ninguém ganhar nenhum prêmio. Mas as brin-cadeiras eram muito divertidas, e o barão pagava tudo do próprio bolso.
Naquele momento, porém, Will não estava preo-cupado com a feira e suas atrações. Ele teria tempo para elas mais tarde naquele dia. Agora, estava a caminho de se encontrar com seus antigos colegas protegidos.
Segundo a tradição, todos os mestres de ofício da-vam folga aos seus aprendizes no Dia da Colheita, mesmo que não tivessem participado da colheita em si. Will tinha se perguntado durante semanas se Halt estaria ou não de acordo com a prática. O arqueiro parecia não dar impor-tância às tradições e tinha seu jeito de fazer as coisas. Mas, duas noites antes, sua ansiedade tinha sido tranquilizada. Halt tinha dito, de mau humor, que o garoto podia tirar uma folga, mesmo que provavelmente fosse esquecer tudo o que tinha aprendido nos últimos três meses.
Aqueles três meses tinham sido uma época de trei-no constante com o arco e as facas que Halt lhe tinha da-do. Três meses rastejando pelos campos fora do castelo, movendo-se entre um minguado esconderijo e outro, ten-tando se movimentar sem que os olhos de águia de Halt o vissem. Três meses cavalgando e cuidando de Puxão, formando um elo especial de amizade com o pequeno pônei.
“Essa foi a melhor parte de todas”, ele pensou. Agora, estava pronto para o feriado e para se divertir um pouco. Mesmo o pensamento de que Horace estaria lá, não diminuía seu prazer. Talvez alguns meses de treina-mento na Escola de Guerra tivessem mudado um pouco os modos agressivos do garoto.
Jenny tinha arranjado o encontro para o feriado, encorajando os outros a se juntar a ela com a promessa de uma fornada de tortas de carne que traria da cozinha. Ela já era uma das melhores alunas de mestre Chubb, e ele alardeava a habilidade dela para quem quisesse ouvir — dando bastante ênfase ao papel essencial que seu treina-mento tinha desempenhado no aprendizado, é claro.
O estômago de Will roncou com prazer ao pensar nas tortas. Ele estava morrendo de fome, já que não tinha tomado café de propósito para deixar lugar para elas. As tortas de Jenny já eram famosas no Castelo Redmont.
Ele tinha chegado cedo ao ponto de encontro, desmontando de Puxão e o levando para a sombra de uma macieira. O pequeno pônei levantou a cabeça e olhou de-sejosamente para as maçãs nos galhos, totalmente fora de seu alcance. Will sorriu para ele, subiu na árvore depressa, apanhou uma fruta e a deu ao animal.
— Só vai ganhar uma — ele disse. — Você sabe o que Halt acha de comer demais.
Puxão balançou a cabeça impaciente. Esse ainda era um ponto de divergência entre ele e o arqueiro. Will olhou ao redor. Não havia sinal dos outros, então ele se sentou à sombra da árvore e se recostou no tronco nodoso para esperar.
— Ora, é o jovem Will, não é mesmo? — pergun-tou uma voz grave logo atrás dele.
Will se levantou rapidamente e tocou a testa num cumprimento educado. Era o barão Arald, sentado no seu
gigantesco cavalo de batalha e acompanhado por vários de seus principais cavaleiros.
— Sim, senhor — Will respondeu nervoso. Ele não estava acostumado a ver o barão lhe dirigir a palavra. — Um bom Dia da Colheita para o senhor.
O barão fez um gesto de cabeça e se inclinou para a frente, apoiado confortavelmente na sela. Will teve que levantar a cabeça para olhar para ele.
— Devo dizer, meu jovem, que você parece fazer parte da paisagem — o barão comentou. — Quase não o vi com essa capa cinza de arqueiro. Halt já lhe ensinou todos os seus truques?
Will olhou para a capa cinza e verde que estava usando. Halt a tinha dado algumas semanas atrás e tinha lhe mostrado como essa combinação de cores disfarçava a silhueta de quem a usava e o ajudava a se misturar à pai-sagem. Aquela era uma das razões pelas quais os arqueiros podiam se deslocar sem serem vistos com tanta facilidade.
— É a capa, senhor — Will afirmou. — Halt a chama de camuflagem.
O barão assentiu, pois certamente já conhecia o termo, que ainda era um conceito novo para Will.
— Só não a use para roubar mais bolos — ele disse com uma severidade fingida, e Will sacudiu a cabeça de-pressa.
— Ah, não, senhor! Halt me disse que, se eu fizer outra coisa desse tipo, vai dar umas palmadas no meu tra-se... — ele parou envergonhado, pois não sabia se “trasei-
ro” era uma palavra que se podia dizer na presença de al-guém tão importante como o barão.
O barão assentiu novamente, tentando não deixar que um sorriso largo aparecesse em seu rosto.
— Tenho certeza que sim. E como você está se dando com ele, Will? Está gostando de aprender a ser um arqueiro?
Will ficou quieto. Para falar a verdade, não tinha tido tempo para pensar se estava gostando ou não. Passa-va os dias muito ocupado aprendendo novas habilidades, treinando com o arco e as facas e trabalhando com Puxão. Aquela era a primeira vez em três meses que tinha alguns instantes para realmente pensar no assunto.
— Acho que sim — ele disse hesitante. — É que... — a voz dele desapareceu, e o barão o olhou com aten-ção.
— É que...? — ele insistiu.
Will mudou de posição, desejando que sua boca não continuasse a colocá-lo sempre nessas situações por falar demais. As palavras acabavam surgindo antes que ele tivesse tempo de pensar se queria dizê-las ou não.
— É que... Halt nunca sorri — continuou pouco à vontade. — Ele está sempre tão sério.
Ele teve a impressão de que o barão estava escon-dendo um sorriso.
— Bem, você sabe que ser um arqueiro é um negó-cio sério — o barão falou. — Tenho certeza de que Halt dá essa impressão a você.
— O tempo todo — Will disse arrependido e, desta vez, o barão não conseguiu deixar de sorrir.
— É só prestar atenção ao que ele diz, jovem. Você está aprendendo um trabalho muito importante.
— Sim, senhor. — Will ficou um pouco surpreso por perceber que concordava com o barão.
Arald estendeu a mão para apanhar as rédeas. Se-guindo um impulso, antes que os nobres se afastassem, Will deu um passo à frente.
— Desculpe, senhor — ele disse hesitante, e o ba-rão se virou para olhá-lo.
— Sim, Will? Will mexeu os pés de novo e conti-nuou.
— Senhor, lembra-se de quando seus exércitos lu-taram contra Morgarath?
O rosto alegre do barão Arald foi tomado por um ar pensativo.
— Não vou esquecer isso tão depressa, garoto. Por que quer saber?
— Senhor, Halt me disse que foi um arqueiro que mostrou à cavalaria o caminho secreto através de Slipsu-nder para que ela pudesse atacar o inimigo pelas costas...
— Isso é verdade — Arald confirmou.
— Eu tenho me perguntado, senhor, qual era o nome do arqueiro — Will terminou, sentindo-se corar com sua ousadia.
— Halt não lhe contou? — o barão perguntou. Will deu de ombros.
— Ele disse que nomes não são importantes. Disse que o jantar era importante, mas nomes, não.
— Mas você acha nomes importantes, apesar do que o seu mestre lhe disse? — o barão retrucou, parecen-do franzir o cenho novamente.
Will engoliu em seco e prosseguiu.
— Acho que foi o próprio Halt, senhor. E me perguntei por que ele não foi condecorado ou homenage-ado por sua habilidade.
O barão pensou por um momento e então tornou a falar.
— Bem, você está certo, Will — ele confirmou. — Foi Halt. E eu quis homenageá-lo, mas ele não permitiu. Ele disse que arqueiros não recebem esse tipo de home-nagem.
— Mas... — Will começou num tom perplexo, mas a mão erguida do barão o impediu de falar mais.
— Vocês, arqueiros, têm costumes próprios, Will, como tenho certeza de que está aprendendo. Às vezes, outras pessoas não os compreendem. Apenas escute o que Halt diz e faça o que ele faz, e estou certo de que você vai ter uma vida honrosa.
— Sim, senhor.
Will fez outra saudação quando o barão bateu as rédeas levemente no pescoço do cavalo e o fez virar em direção ao galpão da feira.
— Agora, chega de conversa. Não podemos taga-relar o dia inteiro. Vou jogar. Talvez este ano eu consiga acertar uma argola num daqueles benditos cubos.
O barão começou a se afastar, mas então pareceu lembrar-se de algo e parou por um segundo.
— Will — ele chamou.
— Sim, senhor?
— Não conte a Halt que eu lhe disse que ele con-duziu a cavalaria. Não quero que ele fique zangado comi-go.
— Sim, senhor — Will concordou com um sorriso.
Quando o barão se afastou, ele voltou a se sentar para esperar pelos amigos.


CAPÍTULO 16

Jenny, Alyss e George chegaram logo depois. Como tinha prometido, Jenny trouxe uma porção de tortas frescas embrulhadas num tecido vermelho. Ela as colocou cuida-dosamente no chão debaixo da macieira enquanto os amigos se reuniam à sua volta. Até Alyss, normalmente equilibrada e séria, parecia ansiosa para pôr as mãos numa das obras-primas de Jenny.
— Vamos! — George disse. — Estou morrendo de fome.
— Devemos esperar o Horace — Jenny retrucou, balançando a cabeça, olhando à sua volta a procurar pelo colega, mas sem o ver no meio da multidão.
— Ah, vamos lá — George pediu. — Fiquei traba-lhando feito um escravo numa petição para o barão a manhã toda!
— Talvez a gente deva ir comendo — Alyss disse, revirando os olhos para o céu. — Senão ele vai começar uma discussão legal e vamos ficar aqui o dia todo. Nós podemos guardar algumas para o Horace.
Will sorriu. Agora, George estava totalmente dife-rente do garoto tímido e gaguejante do Dia da Escolha. Era evidente que a Escola de Escribas o tinha feito de-senvolver-se. Jenny serviu duas tortas para cada um e se-parou duas para Horace.
Os outros começaram a comer ansiosamente, e lo-go começou o coro de elogios para as tortas. A reputação de Jenny era merecida.
— Isto não pode ser descrito como uma simples torta, Vossa Excelência — George disse, levantando-se acima deles e estendendo os braços para os lados como se estivesse se dirigindo a um tribunal imaginário. Descrever isto como uma torta seria um grosseiro erro da justiça, do tipo que este tribunal nunca viu antes!
— Há quanto tempo ele está assim? — Will per-guntou para Alyss. — Todos ficam assim depois de alguns meses de prática legal — ela respondeu sorrindo. — Ul-timamente, o problema é fazer o George calar a boca.
— Ah, sente-se, George — Jenny ordenou, coran-do com o elogio, mas muito satisfeita. — Você é mesmo um bobo.
— Talvez, cara senhorita. Mas foi a simples magia destas obras de arte que revirou o meu cérebro. Elas não são tortas, elas são sinfonias! — ele levantou o que restava de sua torta para os outros, fingindo fazer um brinde. — Eu lhe dou... a sinfonia de tortas da srta. Jenny!
Alyss e Will, rindo um para o outro e para George, levantaram suas tortas em resposta e repetiram o brinde. Então, os quatro aprendizes explodiram numa gargalhada.
Era uma pena que Horace tivesse escolhido exata-mente aquele momento para chegar. Ele se sentia mal em sua nova situação. O trabalho era duro e incessante, e a disciplina, firme. Naturalmente, tinha esperado que, em circunstâncias normais, pudesse cuidar de tudo. Mas ser o alvo do rancor de Bryn, Alda e Jerome estava tornando a sua vida um pesadelo — literalmente. Os três cadetes do 2° ano o levantavam da cama a qualquer hora da noite e o arrastavam para fora para realizar as tarefas mais humi-lhantes e exaustivas.
A falta de sono e a preocupação de nunca saber quando eles poderiam aparecer para o atormentar ainda mais estava fazendo que ele se prejudicasse nos trabalhos da classe. Seus colegas de quarto, ao perceber que, se mostrassem qualquer solidariedade para com ele, também poderiam se tornar alvos, o deixavam de lado, e assim ele se sentia totalmente sozinho em seu sofrimento. A única coisa que sempre quis estava se transformando em cinzas rapidamente. Ele detestava a Escola de Guerra, mas não via uma saída para essa situação difícil sem ficar ainda mais constrangido e humilhado.
Agora, no único dia em que poderia escapar das restrições e das tensões da Escola de Guerra, chegou e encontrou os antigos colegas já ocupados com seu ban-quete. Ficou zangado e magoado porque eles não se im-
portaram em esperar por ele. Não tinha idéia de que Jenny havia separado algumas tortas para ele e supôs que ela já as tinha dividido, e isso doeu mais que tudo. De todos os seus antigos colegas protegidos, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo. Jenny sempre estava alegre, sim-pática, disposta a ouvir os problemas dos outros. Ele per-cebeu que tinha estado ansioso para vê-la outra vez na-quele dia e sentiu que ela o tinha decepcionado.
Estava predisposto a pensar mal dos outros. Alyss sempre pareceu se manter longe dele, como se não fosse bom o suficiente para ela, e Will sempre pregava peças nele para depois sair correndo e subir naquela árvore imensa onde não podia alcançá-lo. Pelo menos era assim que via as coisas, vulnerável como estava no momento. Convenientemente, esqueceu as vezes em que tinha dado uma bofetada na orelha de Will ou uma chave de braço até que o garoto menor se visse obrigado a pedir, aos gri-tos, que parasse.
Quanto a George, Horace nunca tinha dado muita atenção a ele. O garoto magro era estudioso e dedicado aos seus livros, e Horace sempre o tinha considerado uma pessoa monótona e desinteressante. Agora, estava ali se exibindo enquanto os outros riam e comiam as tortas e não deixavam nada para ele. De repente, Horace odiou todos.
— Bom, isso é muito legal, não é mesmo? — disse com amargura, e todos se viraram para ele com o riso morrendo em seus rostos.
Como não podia deixar de ser, Jenny foi a primeira a se recuperar.
— Horace! Finalmente você chegou! — ela disse.
Ela começou a andar na direção dele, mas o olhar frio no rosto do garoto a fez parar.
— Finalmente? — ele repetiu. — Eu me atraso al-guns minutos e, de repente, chego aqui “finalmente”? E tarde demais, porque vocês já devoraram todas as tortas.
Aquilo não era nada justo para com a pobre Jenny. Como a maioria dos cozinheiros, depois de preparar uma refeição, ela tinha pouco interesse em comer. Seu verda-deiro prazer era ver os outros apreciarem os resultados de seu trabalho. E ouvir os elogios. Consequentemente, não tinha comido nenhuma de suas tortas. Ela então se virou para as duas que tinha coberto com um guardanapo e guardado para ele.
— Não, não — ela disse depressa. — Ainda sobra-ram algumas! Veja.
Mas a raiva de Horace não deixou que ele agisse ou falasse racionalmente.
— Bem — ele disse com a voz cheia de sarcasmo —, talvez eu deva voltar mais tarde para que vocês te-nham tempo de acabar com elas também.
— Horace!
Lágrimas surgiram nos olhos de Jenny. Ela não ti-nha idéia do que estava errado com o amigo. Tudo o que sabia era que o plano para uma reunião agradável com os antigos colegas do castelo estava caindo por terra.
George deu um passo à frente e observou Horace com curiosidade. O garoto alto e magro inclinou a cabeça para o lado a fim de analisar o aprendiz de guerreiro mais de perto, como se fosse uma peça em exibição ou uma prova num tribunal de justiça.
— Não há motivo para ser tão desagradável — ele disse com sensatez.
Mas Horace não queria ouvir conselhos sensatos. Zangado, ele empurrou o outro garoto para o lado.
— Fique longe de mim — ele disse. — E veja bem como fala com um guerreiro!
— Você ainda não é um guerreiro — Will zombou. — Ainda é só um aprendiz como todos nós.
Jenny fez um pequeno gesto com as mãos, pedindo para Will esquecer o assunto. Horace, que estava se ser-vindo das tortas restantes, olhou para cima devagar. Ele mediu Will dos pés à cabeça por alguns segundos.
— Ahá! Então o aprendiz espião está com a gente hoje!
Ele olhou para ver se os outros estavam rindo de sua piada. Não estavam, e isso só serviu para deixá-lo mais desagradável.
— Acho que Halt está ensinando você a andar es-condido por ai, espiando todo mundo, não é?
Horace deu um passo à frente sem esperar resposta e, sarcástico, cutucou a capa manchada de Will com o de-do.
— O que é isso? Você não tinha bastante tinta para que ela ficasse só de uma cor?
— É uma capa de arqueiro — Will informou com calma, controlando a raiva que estava crescendo dentro dele.
Horace resfolegou zombeteiro, enfiando metade de uma torta na boca e espalhando migalhas para os lados.
— Não seja tão desagradável — George pediu.
Com o rosto vermelho, Horace se virou para o aprendiz de escriba.
— Veja como fala, garoto! — ele disparou. — Vo-cê sabe que está falando com um guerreiro!
— Um aprendiz de guerreiro — Will repetiu com firmeza, dando ênfase à palavra “aprendiz”.
Horace ficou mais vermelho e olhou zangado para os dois. Will ficou tenso, sentindo que o garoto maior es-tava pronto para atacar. Mas havia alguma coisa no olhar de Will e na sua atitude determinada que fez Horace pen-sar duas vezes. Ele nunca tinha visto aquele olhar de desa-fio antes. No passado, sempre tinha visto medo quando ameaçava Will. Essa confiança recém-encontrada o per-turbou um pouco.
Em vez disso, ele se voltou para George e lhe deu um forte empurrão no peito.
— E isso? Acha desagradável também? — ele disse quando o garoto magro e alto cambaleou para trás.
Os braços de George giraram no ar quando ele tentou evitar uma queda. Acidentalmente, deu um soco
rápido na lateral de Puxão. O pequeno pônei, que pastava tranquilamente, empinou-se de repente.
— Quieto, Puxão — Will ordenou, e o cavalo se acalmou imediatamente.
Foi então que Horace o notou pela primeira vez. Ele se aproximou e observou o pônei desgrenhado com mais atenção.
— O que é isso? — perguntou zombeteiro. — Al-guém trouxe um cachorro grande e feio para a festa?
— Ele é o meu cavalo — Will disse com calma, fechando os punhos.
Ele podia suportar as zombarias de Horace, mas não ia aguentar ver seu cavalo ser insultado.
Horace soltou uma forte gargalhada.
— Um cavalo? Isso não é um cavalo! Na Escola de Guerra montamos cavalos de verdade! Não cachorros despenteados! Também acho que ele precisa de um bom banho!
Horace franziu o nariz e fingiu cheirar o pônei.
O animal olhou de lado para Will. “Quem é esse cara irritante?”, seus olhos pareciam dizer. Então Will, escondendo com cuidado o sorriso malvado que estava tentando aparecer em seu rosto, disse como quem não quer nada:
— Ele é um cavalo de arqueiro. Somente um ar-queiro pode montar nele.
— Minha avó poderia montar esse cachorro des-grenhado! — Horace retrucou rindo.
— Talvez ela pudesse, mas duvido que você possa — Will respondeu.
Antes mesmo de terminar o desafio, Horace estava desamarrando as rédeas. Puxão olhou para Will, e o garo-to quase jurou que o cavalo assentiu de leve com a cabeça.
Horace pulou facilmente nas costas de Puxão. O pônei ficou parado.
— Muito fácil — Horace exultou. Em seguida, en-terrou os calcanhares nos lados de Puxão. — Vamos, ca-chorrinho! Vamos dar uma corrida. Will viu o conhecido retesar dos músculos das pernas e do corpo de Puxão. Então, o pônei saltou no ar com as quatro patas, virou-se violentamente, desceu nas patas dianteiras e jogou as tra-seiras no ar.
Horace voou como um pássaro durante vários se-gundos e caiu estirado de costas na poeira. George e Alyss assistiram a tudo deliciados. O encrenqueiro ficou deitado por uns segundos, espantado e tonto. Jenny se levantou para ver se ele estava bem, mas então, com uma expressão dura no rosto, parou. Ele tinha pedido aquilo.
Havia então uma chance, apenas uma chance, de que todo o incidente terminasse ali. Mas Will não resistiu à tentação de fazer um último comentário.
— Por que você não pergunta à sua avó se ela pode ensinar você a montar? — perguntou sério.
George e Alyss conseguiram esconder o sorriso mas, infelizmente, foi Jenny quem não conseguiu parar o risinho que escapou de sua boca.
Num instante, Horace se levantou com uma ex-pressão furiosa. Ele olhou à sua volta, viu um galho caído da macieira e o agarrou, sacudindo-o sobre a cabeça en-quanto corria na direção de Puxão.
— Você vai ver, cavalo maldito! — ele gritou furi-oso, agitando o pau na direção do animal com selvageria.
O pônei dançou para o lado, para fora do alcance do braço de Horace. Antes que o rapaz pudesse atacar outra vez, Will estava em cima dele.
Aterrissou nas costas de Horace, e seu peso e a força do salto jogaram os dois no chão. Rolaram na terra atracados, cada qual tentando vencer o outro. Puxão, as-sustado ao ver o dono em perigo, relinchou nervosamente e se empinou.
Um dos braços livres que Horace agitava louca-mente conseguiu desferir um soco na orelha de Will. Este, por sua vez, conseguiu libertar o braço direito e deu um soco forte no nariz de Horace.
O sangue escorria do rosto do garoto maior. Os braços de Will estavam fortes e musculosos depois de três meses de treinamento com Halt, mas Horace também ti-nha aulas numa escola exigente. Ele atingiu o estômago de Will com o punho, e este abriu a boca como se estivesse sufocando.
Horace se levantou com dificuldade, mas Will, num movimento que Hall tinha lhe mostrado, girou as pernas formando um arco, atingiu as pernas de Horace e o fez cair outra vez.
“Sempre ataque primeiro”, Halt tinha metido em sua cabeça nas horas em que passaram praticando com-bate desarmado. Quando Horace desabou no chão outra vez, Will mergulhou sobre ele e tentou prender seus bra-ços atrás dos joelhos.
Então Will sentiu uma mão de ferro na parte de trás de seu colarinho. Ele foi levantado no ar como um peixe no anzol, debatendo-se e protestando.
— O que está acontecendo aqui, seus dois desor-deiros? — perguntou a voz alta e zangada em seu ouvido.
Will se virou e percebeu que estava sendo segurado por sir Rodney, o mestre de guerra. E o grande guerreiro parecia muito zangado. Horace se levantou com dificul-dade e ficou em posição de sentido. Sir Rodney soltou o colarinho de Will. O aprendiz de arqueiro caiu no chão como um saco de batatas e logo ficou em posição de sen-tido também.
— Dois aprendizes brigando feito desordeiros e estragando o feriado — sir Rodney disse zangado. — E, para piorar as coisas, um deles é meu aprendiz!
Will e Horace estavam de olhos baixos, incapazes de encarar o rosto furioso do mestre de guerra.
— Muito bem, Horace, o que está acontecendo aqui?
Horace se remexeu inquieto e ficou vermelho. Ele não respondeu. Sir Rodney olhou para Will.
— Certo, então você, garoto dos arqueiros! O que foi tudo isso?
— Só uma briga, senhor — Will murmurou depois de hesitar um pouco.
— Isso eu estou vendo! — o mestre de guerra ber-rou. — Não sou idiota, sabia?
Ele fez uma pausa e esperou para ver se um dos garotos tinha mais alguma coisa a acrescentar. Os dois fi-caram em silêncio. Sir Rodney suspirou exasperado. Ga-rotos! Se eles não estavam debaixo da sua vista, brigavam! E, se não estavam brigando, estavam roubando ou que-brando alguma coisa.
— Muito bem — ele disse finalmente. — A briga acabou. Agora, apertem as mãos e esqueçam o assunto.
Ele fez uma pausa e, como nenhum dos meninos tomou a iniciativa, rugiu com sua voz retumbante:
— Façam o que mandei!
Estimulados a tomar uma atitude, porém relutantes, Will e Horace apertaram as mãos. Mas, assim que Will olhou nos olhos do colega, viu que a questão estava longe de ser resolvida.
“Nós vamos terminar isso outra hora”, dizia o olhar zangado de Horace.
“Quando você quiser”, os olhos do aprendiz de arqueiro responderam.


CAPÍTULO 17

A primeira neve do ano formava uma camada grossa no chão quando Will e Halt cavalgaram lentamente para casa vindos da floresta.
Seis semanas tinham se passado desde o confronto do Dia da Colheita e a situação com Horace continuava sem solução. Houve poucas oportunidades para que os dois garotos recomeçassem a discussão, visto que seus respectivos mestres os mantinham ocupados e seus cami-nhos raramente se cruzavam.
Will tinha visto o aprendiz de guerreiro ocasional-mente, mas sempre de longe. Eles não tinham se falado, nem mesmo tido a oportunidade de perceber a presença um do outro. Mas Will sabia que o sentimento hostil ainda estava lá e algum dia viria à tona.
Estranhamente, essa possibilidade não o perturbava como teria feito alguns meses antes. Não que esperasse ansiosamente pela continuação da luta com Horace, mas sentiu que podia encarar a idéia com uma certa tranquili-dade. Ele sentia uma grande satisfação quando se lembra-va do soco forte e sólido que tinha dado no nariz de Ho-
race. Também se dava conta, com uma leve surpresa, de que a lembrança do incidente se tornava mais agradável pelo fato de que tinha acontecido na presença de Jenny e — era ali que estava a surpresa — Alyss. Mesmo que o acontecimento não tivesse produzido resultados concre-tos, ele ainda encerrava muitos fatos que faziam Will pen-sar.
Mas ele se deu conta de que não podia fazê-lo na-quele momento, pois o tom de voz zangado de Halt o ar-rastou de volta ao presente.
— Será que podemos continuar procurando pega-das ou você tem alguma coisa mais importante para fazer?
No mesmo instante, Will se virou, tentando enxer-gar o que Halt tinha mostrado. Enquanto cavalgavam pela neve firme e branca, e os cascos dos cavalos faziam ape-nas leves ruídos, Halt tinha mostrado alterações na co-bertura clara e regular. Eram pegadas deixadas por ani-mais, e era tarefa de Will identificá-las. Ele tinha bons olhos e uma boa cabeça para o trabalho. Normalmente, gostava dessas lições de caça, mas agora sua atenção tinha se desviado e ele não tinha idéia de para onde deveria olhar.
— Ali — Halt disse como quem não esperava ter que repetir a indicação.
Will ficou em pé nos estribos para ver as marcas na neve com mais clareza.
— Coelho — ele disse prontamente, e Halt olhou de lado. — Coelho? — repetiu, e Will olhou novamente, corrigindo-se quase de imediato.
— Coelhos — disse, dando ênfase ao plural, pois Halt insistia em ser preciso.
— Isso mesmo — Halt murmurou. — Afinal, se as pegadas fossem de escandinavos, você precisaria saber quantos eram.
— Acho que sim — Will respondeu com humilda-de.
— Você acha que sim? — Halt retrucou sarcástico. — Acredite, Will, há uma grande diferença entre saber se há um escandinavo por perto ou uma dúzia.
Will balançou a cabeça num gesto de desculpas. Uma das mudanças que tinha acontecido no relaciona-mento deles ultimamente era o fato de que Halt quase nunca mais se referia a ele como “garoto”. Naqueles dias, era sempre “Will”. Will gostava disso, pois o fazia sentir que, de certa forma, tinha sido aceito pelo arqueiro com cara de poucos amigos. Ao mesmo tempo, gostaria que Halt sorrisse vez ou outra quando dissesse o nome dele.
Ou mesmo só uma vez.
A voz baixa de Halt o arrancou de seus devaneios.
— Pois bem... coelhos. Isso é tudo? Will olhou de novo. Era difícil enxergar na neve remexida, mas depois que Halt tinha chamado sua atenção, viu outra série de pegadas.
— Um arminho! — disse triunfante, e Halt assentiu outra vez.
— Um arminho. Mas você deveria saber que havia outra coisa, Will. Olhe como essas pegadas de coelho são fundas. É óbvio que alguma coisa os assustou. Quando você vir um sinal como esse, é uma indicação para procu-rar mais alguma coisa.
— Entendi — Will disse, mas Halt balançou a ca-beça.
— Não. Muitas vezes você não entende porque não se concentra. Você tem que trabalhar nisso.
Will não disse nada. Ele simplesmente aceitou a crí-tica. Tinha aprendido que Halt não criticava sem motivo e, quando havia um, não havia desculpas que pudessem salvá-lo.
Eles continuaram a cavalgar em silêncio. Will exa-minava o chão ao redor deles com atenção, procurando mais pegadas e mais sinais de animais. Andaram aproxi-madamente mais 1 quilômetro e estavam começando a ver alguns dos marcos conhecidos que lhes diziam que esta-vam perto da cabana quando uma coisa chamou a atenção de Will.
— Olhe! — ele exclamou, apontando para um tre-cho de neve remexida ao lado da trilha. — O que é isso?
Halt se virou para olhar. As pegadas, se é que eram pegadas, eram diferentes de todas as que Will tinha visto até então. O arqueiro fez seu cavalo se aproximar da beira da trilha e as analisou com atenção.
— Hum — ele murmurou pensativo. — Essa é uma que ainda não lhe mostrei. Não se vêem muitas des-sas atualmente, portanto dê uma boa olhada, Will.
O arqueiro desceu da sela com facilidade e, seguido por Will, andou pela neve na altura dos joelhos até as marcas.
— O que é? — o garoto quis saber.
— Porco selvagem — Halt disse apenas. — E dos grandes.
Will olhou em volta nervoso. Ele talvez não sou-besse qual era a aparência das pegadas de um porco sel-vagem na neve, mas tinha ouvido bastante sobre as cria-turas para saber que elas eram muito, mas muito perigo-sas.
Halt percebeu o olhar e fez um gesto tranquilizador com a mão.
— Relaxe — ele disse. — Ele não está por perto.
— Você consegue dizer isso por causa das pegadas? — Will perguntou.
Ele olhou para a neve fascinado. Os sulcos pro-fundos obviamente tinham sido feitos por um animal muito grande e, aparentemente, também muito zangado.
— Não — Halt respondeu com calma. — É por causa dos nossos cavalos. Se um porco selvagem desse tamanho estivesse aqui por perto, esses dois estariam res-folegando, batendo as patas e relinchando tanto que não poderíamos nem ouvir nossos pensamentos.
— Ah — Will retrucou, sentindo-se um pouco bobo.
Ele afrouxou a mão que segurava o arco. Entre-tanto, apesar das palavras tranquilizadoras do arqueiro, não resistiu e deu só mais uma olhada em volta. Quando fez isso, seu coração começou a bater cada vez mais de-pressa.
O mato do outro lado da trilha estava se mexendo, mesmo que só levemente. Normalmente, ele teria culpado a brisa pelo movimento, mas o treinamento com Halt ti-nha melhorado seu raciocínio e seu senso de observação. Naquele momento, não havia brisa nem mesmo a mais leve aragem.
Mas, mesmo assim, os arbustos continuavam a se mexer.
A mão de Will desceu lentamente para a aljava. Muito devagar, para não assustar a criatura nos arbustos, ele pegou uma flecha e a colocou na corda do arco.
— Halt? — ele tentou falar em voz baixa, sem conseguir evitar que ela tremesse um pouco.
Ele se perguntou se seu arco conseguiria parar um porco selvagem furioso. Achava que não.
Halt olhou ao redor e viu a flecha posicionada no arco de Will virada na direção para a qual o garoto estava olhando.
— Espero que você não esteja pensando em atirar no pobre velho fazendeiro que está escondido atrás desses
arbustos — ele disse sério e em voz alta para que chegasse até o grupo compacto de arbusto do outro lado da trilha.
No mesmo instante, houve um movimento nas plantas, e Will escutou uma voz nervosa gritando:
— Não atire, meu bom senhor! Por favor, não ati-re! Sou só eu!
Os arbustos se abriram quando um homem velho de aparência desgrenhada e assustada se levantou e correu para a frente. Mas a pressa foi sua desgraça, pois seu pé ficou preso nos galhos dos arbustos e ele caiu estendido na neve. Levantou-se com esforço, desajeitado, as mãos estendidas para mostrar que não estava armado. Ao se aproximar, continuou a falar sem parar, confuso.
— Sou só eu, senhor! Não precisa atirar, senhor! Sou só eu, juro, e não sou perigoso para pessoas como vocês!
Ele correu para o centro da trilha com os olhos presos no arco e na ponta cintilante e afiada da flecha de Will. Lentamente, depois de examinar melhor o intruso, o garoto afrouxou a tensão na corda e abaixou o arco. O velho era extremamente magro. Vestido com um macacão de fazendeiro esfarrapado e sujo, tinha braços e pernas compridos e esquisitos e cotovelos e joelhos nodosos. Sua barba era grisalha e manchada, e ele estava ficando calvo no alto da cabeça.
O homem parou a alguns metros deles e sorriu nervosamente para os dois vultos cobertos pela capa.
— Sou só eu — ele repetiu pela última vez.



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